São Paulo, quinta, 12 de novembro de 1998

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O surto epidêmico de novos municípios

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Têm assuntos que mexem com o meu sistema nervoso. A criação irresponsável de novos municípios no Brasil, desde o advento da Constituição de 1988, é sem dúvida um deles. A praga da multiplicação desnecessária de máquinas públicas e câmaras municipais tornou- se, mais que um modo esperto de vida, um surto epidêmico entre nós.
Como não se trata de um choque abrupto ou de algo com impacto imediato, o viés natural da mídia é perder de vista a gravidade do fenômeno. Uma andorinha, dizia Erasmo, não faz verão. O surgimento isolado de um novo município é tema de interesse estritamente local: não comove a opinião pública, não faz manchete, não dá pauta em telejornal. Nem por isso, é claro, o efeito cumulativo do estrago é menos devastador.
O primeiro passo para se ter uma visão da situação a que chegamos é recuar um pouco no tempo.
Em 1990, existiam 4.491 municípios no Brasil. Hoje são 5.513. De lá para cá, portanto, foram criados nada menos que 1.022 novos municípios, cada um dotado de prefeitura, secretarias, funcionários e câmara legislativa (de 9 a 21 vereadores), sem esquecer, é claro, os aposentados de hoje e do porvir. Um show de cidadania.
Ao contrário do que comumente se acredita -e digo isso porque era também o que eu imaginava até olhar os números-, o ritmo da avalanche não diminuiu nos últimos anos. Foram criados mais novos municípios desde 94 (539) -com os Estados de Minas (97), Maranhão (81) e Piauí (74) liderando a farra- do que nos quatro primeiros anos da década (483).
Seja qual for o critério utilizado -crescimento da receita bruta, geração de novos empregos ou taxa de retorno sobre o investimento-, o desempenho da indústria de novos municípios vem se revelando um negócio como poucos no ramo do ócio cívico. Outra vantagem do setor é ser quase imune às vicissitudes dos ciclos econômicos.
Daí que o poder legislativo no Brasil, reforçado por dezenas de milhares de novos vereadores, já empregue mais gente do que todo o nosso setor automotivo junto.
De fato, a indústria de novos municípios tem tudo para conquistar o título de mais dinâmico e pujante setor da economia brasileira nos anos 90. Talvez seja o nosso nicho e vocação no mundo globalizado.
Como explicar o afã municipalista que empolga a nação? O que poderia estar provocando esse surto de novas prefeituras e câmaras de vereadores espalhadas pelo país?
A razão é simples e pode ser decomposta em dois elementos básicos: o sonho (fator motivacional) e a carniça (fator institucional).
O componente motivacional do afã aparece com clareza no refrão de um velho samba do genial Ismael Silva (a "alma do samba", segundo Noel Rosa) que a censura do Estado Novo getulista houve por bem proibir sob a alegação de que a letra era "destrutiva" e anti-social.
"Se eu precisar algum dia/ De ir pro batente/ Não sei o que será/ Pois vivo na malandragem/ E vida melhor não há./ O trabalho não é bom/ Oi, trabalhar só obrigado/ Por gosto ninguém vai lá."
O sonho de viver na flauta, colhendo sem plantar nem precisar saber de onde veio o fruto, é um anseio universal do animal humano. Não é à toa que uma das punições de Adão, ao ser expulso do paraíso, foi precisamente a de ter que passar a ganhar a vida à custa do trabalho e do suor sem trégua.
Mas, se o sonho é universal, as oportunidades de torná-lo realidade vão depender do ambiente institucional. É aí que o sonho compreensível de muitos -a fome de sombra, boa consciência e água fresca- pode virar o pesadelo fiscal de todos. A primeira imagem que me vem à cabeça é a de uma multidão de piranhas devorando carniça.
A carniça, no caso, tem nome e procedência. São todas as transferências intragovernamentais obrigatórias, como o Fundo de Participação dos Municípios, definidas pela Constituição de 88.
Na média nacional, cerca de 69% da receita disponível dos nossos municípios não vem de impostos que eles próprios arrecadam, mas de repasses compulsórios feitos pelos respectivos Estados e pela União.
Para os que têm menos de 50 mil habitantes -e que representam 91% do total de municípios existentes no país- a parcela dos gastos financiada por meio dessa mesada intragovernamental atinge a marca de 87%.
À luz desses dados, e sendo a natureza humana o que é, dá para entender a razão pela qual a criação de municípios se tornou um excelente negócio. No fundo, trata-se de viabilizar a geração de empregos públicos, mas sem ter de arcar com o ônus de arrecadar impostos localmente. Basta mordiscar a carniça das transferências constitucionais. Quem pode ser contra?
O único problema, é claro, é que o dinheiro que está alimentando o ócio cívico dos servidores -só nas câmaras municipais estão pendurados mais de 65 mil vereadores- poderia estar sendo gasto em programas sociais à míngua de recursos. É grotesco que em tempos de arrocho fiscal haja municípios gastando mais com vereadores do que com educação básica.
O caso do Ituiutaba (MG), relatado na Folha de domingo, é ilustrativo. Por que um município com 85 mil habitantes precisaria manter uma câmara com 17 vereadores, ao custo de R$ 4,5 milhões anuais?
Uma ação popular vitoriosa na Justiça conseguiu cortar oito desses vereadores, liberando cerca de R$ 8,5 milhões para gastos sociais na próxima legislatura. A Câmara da cidade, inconsolável, está recorrendo da decisão...
Limitar os gastos com vereadores, como propõe emenda em votação no Senado, ajuda, mas não resolve. O verdadeiro antídoto contra o surto epidêmico de novos municípios será reduzir drasticamente o tamanho da carniça constitucional na reforma tributária.
A autonomia financeira deve ser a base da autonomia política. Os municípios que não conseguirem arrecadar uma proporção mínima, a ser definida, daquilo que gastam simplesmente não têm realidade econômica. Jogar a conta para o resto da sociedade é parasitismo. Conter a praga não basta. É preciso recuperar o que ela tomou.



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