|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O surto epidêmico de novos municípios
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Têm assuntos que mexem
com o meu sistema nervoso. A
criação irresponsável de novos
municípios no Brasil, desde o
advento da Constituição de
1988, é sem dúvida um deles. A
praga da multiplicação desnecessária de máquinas públicas e
câmaras municipais tornou- se,
mais que um modo esperto de
vida, um surto epidêmico entre
nós.
Como não se trata de um choque abrupto ou de algo com impacto imediato, o viés natural
da mídia é perder de vista a
gravidade do fenômeno. Uma
andorinha, dizia Erasmo, não
faz verão. O surgimento isolado
de um novo município é tema
de interesse estritamente local:
não comove a opinião pública,
não faz manchete, não dá pauta em telejornal. Nem por isso, é
claro, o efeito cumulativo do estrago é menos devastador.
O primeiro passo para se ter
uma visão da situação a que
chegamos é recuar um pouco no
tempo.
Em 1990, existiam 4.491 municípios no Brasil. Hoje são
5.513. De lá para cá, portanto,
foram criados nada menos que
1.022 novos municípios, cada
um dotado de prefeitura, secretarias, funcionários e câmara
legislativa (de 9 a 21 vereadores), sem esquecer, é claro, os
aposentados de hoje e do porvir. Um show de cidadania.
Ao contrário do que comumente se acredita -e digo isso
porque era também o que eu
imaginava até olhar os números-, o ritmo da avalanche
não diminuiu nos últimos anos.
Foram criados mais novos municípios desde 94 (539) -com
os Estados de Minas (97), Maranhão (81) e Piauí (74) liderando a farra- do que nos
quatro primeiros anos da década (483).
Seja qual for o critério utilizado -crescimento da receita
bruta, geração de novos empregos ou taxa de retorno sobre o
investimento-, o desempenho
da indústria de novos municípios vem se revelando um negócio como poucos no ramo do
ócio cívico. Outra vantagem do
setor é ser quase imune às vicissitudes dos ciclos econômicos.
Daí que o poder legislativo no
Brasil, reforçado por dezenas de
milhares de novos vereadores,
já empregue mais gente do que
todo o nosso setor automotivo
junto.
De fato, a indústria de novos
municípios tem tudo para conquistar o título de mais dinâmico e pujante setor da economia
brasileira nos anos 90. Talvez
seja o nosso nicho e vocação no
mundo globalizado.
Como explicar o afã municipalista que empolga a nação? O
que poderia estar provocando
esse surto de novas prefeituras e
câmaras de vereadores espalhadas pelo país?
A razão é simples e pode ser
decomposta em dois elementos
básicos: o sonho (fator motivacional) e a carniça (fator institucional).
O componente motivacional
do afã aparece com clareza no
refrão de um velho samba do
genial Ismael Silva (a "alma do
samba", segundo Noel Rosa)
que a censura do Estado Novo
getulista houve por bem proibir
sob a alegação de que a letra
era "destrutiva" e anti-social.
"Se eu precisar algum dia/ De
ir pro batente/ Não sei o que será/ Pois vivo na malandragem/
E vida melhor não há./ O trabalho não é bom/ Oi, trabalhar só
obrigado/ Por gosto ninguém
vai lá."
O sonho de viver na flauta, colhendo sem plantar nem precisar saber de onde veio o fruto, é
um anseio universal do animal
humano. Não é à toa que uma
das punições de Adão, ao ser
expulso do paraíso, foi precisamente a de ter que passar a ganhar a vida à custa do trabalho
e do suor sem trégua.
Mas, se o sonho é universal, as
oportunidades de torná-lo realidade vão depender do ambiente institucional. É aí que o
sonho compreensível de muitos
-a fome de sombra, boa consciência e água fresca- pode virar o pesadelo fiscal de todos. A
primeira imagem que me vem à
cabeça é a de uma multidão de
piranhas devorando carniça.
A carniça, no caso, tem nome
e procedência. São todas as
transferências intragovernamentais obrigatórias, como o
Fundo de Participação dos Municípios, definidas pela Constituição de 88.
Na média nacional, cerca de
69% da receita disponível dos
nossos municípios não vem de
impostos que eles próprios arrecadam, mas de repasses compulsórios feitos pelos respectivos Estados e pela União.
Para os que têm menos de 50
mil habitantes -e que representam 91% do total de municípios existentes no país- a parcela dos gastos financiada por
meio dessa mesada intragovernamental atinge a marca de
87%.
À luz desses dados, e sendo a
natureza humana o que é, dá
para entender a razão pela
qual a criação de municípios se
tornou um excelente negócio.
No fundo, trata-se de viabilizar
a geração de empregos públicos, mas sem ter de arcar com o
ônus de arrecadar impostos localmente. Basta mordiscar a
carniça das transferências
constitucionais. Quem pode ser
contra?
O único problema, é claro, é
que o dinheiro que está alimentando o ócio cívico dos servidores -só nas câmaras municipais estão pendurados mais de
65 mil vereadores- poderia estar sendo gasto em programas
sociais à míngua de recursos. É
grotesco que em tempos de arrocho fiscal haja municípios
gastando mais com vereadores
do que com educação básica.
O caso do Ituiutaba (MG), relatado na Folha de domingo,
é ilustrativo. Por que um município com 85 mil habitantes
precisaria manter uma câmara
com 17 vereadores, ao custo de
R$ 4,5 milhões anuais?
Uma ação popular vitoriosa
na Justiça conseguiu cortar oito
desses vereadores, liberando
cerca de R$ 8,5 milhões para
gastos sociais na próxima legislatura. A Câmara da cidade,
inconsolável, está recorrendo
da decisão...
Limitar os gastos com vereadores, como propõe emenda em
votação no Senado, ajuda, mas
não resolve. O verdadeiro antídoto contra o surto epidêmico
de novos municípios será reduzir drasticamente o tamanho
da carniça constitucional na reforma tributária.
A autonomia financeira deve
ser a base da autonomia política. Os municípios que não conseguirem arrecadar uma proporção mínima, a ser definida,
daquilo que gastam simplesmente não têm realidade econômica. Jogar a conta para o
resto da sociedade é parasitismo. Conter a praga não basta.
É preciso recuperar o que ela tomou.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|