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Crítica/"eyeSpace", "CRWDSPCR" e "Crises"
Merce Cunningham cria novo limite entre a dança e a música
Em "eyeSpace", expectador escolhe ordem de músicos do espetáculo com iPod
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA, EM PARIS
Presença marcante na cena mundial há cinco décadas, o norte-americano Merce Cunningham tem interagido caracteristicamente
com as invenções tecnológicas
e experimentações formais do
seu tempo, sempre com coragem e rigor.
Nesta temporada de sua
companhia, no Théatre de la
Ville, ele apresenta três peças,
abrangendo mais de 40 anos de
carreira: "CRWDSPCR" (1993),
uma das primeiras criações
empregando o programa de
computador "Dance Forms"
para a composição coreográfica; "Crises" (1960), uma antológica pesquisa de movimentos; e
"eyeSpace" (2006), que leva a
um novo limite a dissociação
entre dança e música, típica de
sua obra -o expectador recebe
um iPod para escolher a ordem
de músicas do espetáculo.
"CRWDSPCR" -o nome
vem de "crowd spacer" (espacializador de multidão)- resiste aos afetos espontâneos, na
busca de um gestual abstrato,
significativo em si. A ocupação
do espaço do palco é milimetricamente estudada, em contraponto muito livre com a música
eletroacústica de John King
("Blues 99"), espécie de homenagem "up to date" da tradição
brutalista da música concreta.
Já "Crises" é uma dança de
câmara. A complexidade da
movimentação poderia ser limitada a duas grandes vertentes: nas pernas, muito da dança
clássica, com passos reconhecíveis desse vocabulário como
arabesques e piques; no torso,
muito da dança moderna, com
dobraduras e braços em movimento geométrico.
Aqui, sentimentos e relações
entre as pessoas na cena criam
uma quase narrativa, estimulada pelos supercânones da música para piano mecânico de
Conlon Nancarrow. E assim como sua música é o resultado
visceral de operações mecânicas, também a dança, aqui, produz efeitos comoventemente
líricos, a partir de um assumido
antilirismo de origem.
Bossa em português
O título da peça mais nova,
"eyeSpace", faz um trocadilho
com o seu acessório obrigatório: "iPod" via "iSpace", literalmente "olhoEspaço".
A peça recombina incessantemente grupos e movimentos,
contra um fundo desenhado de
buracos, bolas e espetos, que
ganham profundidade com a
luz. O acervo do iPod foi composto por Mikel Rouse: dez faixas, combinando "new bossa"
cantada em português com versões e elaborações davidbyrnianas e sobreposições eletrônicas, sobrepostas por sua vez
ao cambiante bordão grave nos
alto-falantes da sala.
Que uma das canções aborde
uma questão política (em tradução: "Veja só quem foi às
compras/ na faixa de Gaza"),
cria outro tipo de sobreposição,
aparentemente inesperada para a dança Cunningham. Mas a
aparência, nessa arte e em todos os sentidos, engana. Tudo
aqui fala do modo mais direto e
pertinente ao nosso tempo; tudo exige uma resposta, que não
é só questão de gosto.
Também não era só por gosto
ou educação, que a platéia ovacionava o coreógrafo, numa cadeira de rodas, à frente do seu
glorioso elenco de bailarinos,
na estréia, sexta passada. Era
um aplauso contundente, pela
obra feita e "in progress"; ou
melhor, por tudo o que essa
obra fez e faz por nós e em nós.
Avaliação: ótimo
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