São Paulo, Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2000


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CHEIO DE SAUDADE
O xará da saudade foi minha Xuxa acústica

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha


Para alguns ouvintes privilegiados do bom interior de São Paulo, o elepê de João Gilberto "Chega de Saudade" chegou antes do elepê de Elisabeth Cardoso arranjado por Tom Jobim.
Meu estimado broder, Gilson Felisberto, aos 18 anos fazendo cursinho em São Carlos, comprou, ouviu e delirou com "Chega de Saudade" em 1959, quando eu completava 10 anos. Como havia vitrola na casa de meus pais em Santa Adélia, daqui a pouco faremos meio século ouvindo João Gilberto, tocando de um jeito e, simultaneamente, cantando de outro.
Esse intervalo era um dispositivo estético e, ao mesmo tempo, didático, porque o léxico cortado do violão dele conecta-se à voz baixa e grave para se fazer ouvir no meio da pólis do barulho, cujo volume só tem aumentado desde o primeiro fusquinha jotaká. É por esse motivo que a loucura do silêncio em João Gilberto até hoje nos comove, espécie de terapêutica coletiva onde ouvir é coração, assim como o câncer disfônico e desafinado não faz senão entupir a audição desta nossa insana grei com muitos ouvidos e poucos ouvintes.
João Gilberto sabe que a redenção sociomística do sofrido povo brasileiro far-se-á pela via auditiva: a fé, ou seja, a política entra pelos ouvidos. É talvez o sentido "bim-bom" do baião dele.
Mário Reis. Fafá Lemos. Orlando Silva. João Gilberto pintou no pedaço antes da bossa nova surgir como seu canal midiático bem sucedido. Não é por acaso que ele é um mestre em ouvir e remanejar a tradição musical.
Wilson Batista. Geraldo Pereira. Dorival Caymi. Haroldo Barbosa. Destarte, o chão de João Gilberto é a farinha de mandioca, a qual alimentou os cabras de Lampião e o jagunços de Antônio Conselheiro.
Nasceu em 1931, um ano depois de FHC vir ao mundo. Aos 20 anos estava no Rio sonoro de Radamés Gnatali, o maestro que deu a lâmpada de Aladim para o talentoso Antônio Carlos Jobim.
Embora tantas vezes enojado com os rumos da chamada MPB, o cineasta Glauber Rocha o retratou magnificamente na corrosiva carta "From New York to Paulo Francis", dizendo que João Gilberto cantava sem idioma, porque sua voz é um instrumento.
Eis o que escreveu o cineasta: "Sabe o que João respondeu pros jornalistas quando lhe perguntaram por que não trocava Nova York por São Francisco? "Nova York é mais tan-tan-tan", cantarolou João, e em seguida saiu pela rua 42 sapateando igualzinho Fred Astaire, numa liberdade de anjo, pessoa mais livre e desimpedida que já vi na vida".
Registre-se curioso detalhe: o elepê "Chega de Saudade" coincide com o ano de 1959, em que o compositor Heitor Villa-Lobos partiu desta para melhor.


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