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CHEIO DE SAUDADE
O xará da saudade foi minha Xuxa acústica
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Para alguns ouvintes privilegiados do bom interior de São
Paulo, o elepê de João Gilberto
"Chega de Saudade" chegou antes do elepê de Elisabeth Cardoso
arranjado por Tom Jobim.
Meu estimado broder, Gilson
Felisberto, aos 18 anos fazendo
cursinho em São Carlos, comprou, ouviu e delirou com "Chega de Saudade" em 1959, quando
eu completava 10 anos. Como
havia vitrola na casa de meus
pais em Santa Adélia, daqui a
pouco faremos meio século ouvindo João Gilberto, tocando de
um jeito e, simultaneamente,
cantando de outro.
Esse intervalo era um dispositivo estético e, ao mesmo tempo,
didático, porque o léxico cortado
do violão dele conecta-se à voz
baixa e grave para se fazer ouvir
no meio da pólis do barulho, cujo volume só tem aumentado
desde o primeiro fusquinha jotaká. É por esse motivo que a loucura do silêncio em João Gilberto
até hoje nos comove, espécie de
terapêutica coletiva onde ouvir é
coração, assim como o câncer
disfônico e desafinado não faz
senão entupir a audição desta
nossa insana grei com muitos
ouvidos e poucos ouvintes.
João Gilberto sabe que a redenção sociomística do sofrido povo
brasileiro far-se-á pela via auditiva: a fé, ou seja, a política entra
pelos ouvidos. É talvez o sentido
"bim-bom" do baião dele.
Mário Reis. Fafá Lemos. Orlando Silva. João Gilberto pintou no
pedaço antes da bossa nova surgir como seu canal midiático
bem sucedido. Não é por acaso
que ele é um mestre em ouvir e
remanejar a tradição musical.
Wilson Batista. Geraldo Pereira. Dorival Caymi. Haroldo Barbosa. Destarte, o chão de João
Gilberto é a farinha de mandioca, a qual alimentou os cabras de
Lampião e o jagunços de Antônio Conselheiro.
Nasceu em 1931, um ano depois de FHC vir ao mundo. Aos
20 anos estava no Rio
sonoro de Radamés Gnatali, o
maestro que deu a lâmpada de
Aladim para o talentoso Antônio
Carlos Jobim.
Embora tantas vezes enojado
com os rumos da chamada MPB,
o cineasta Glauber Rocha o retratou magnificamente na corrosiva carta "From New York to
Paulo Francis", dizendo que
João Gilberto cantava sem idioma, porque sua voz é um instrumento.
Eis o que escreveu o cineasta:
"Sabe o que João respondeu pros
jornalistas quando lhe perguntaram por que não trocava Nova
York por São Francisco? "Nova
York é mais tan-tan-tan", cantarolou João, e em seguida saiu pela rua 42 sapateando igualzinho
Fred Astaire, numa liberdade de
anjo, pessoa mais livre e desimpedida que já vi na vida".
Registre-se curioso detalhe: o
elepê "Chega de Saudade" coincide com o ano de 1959, em que o
compositor Heitor Villa-Lobos
partiu desta para melhor.
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