São Paulo, quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

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Sambista só podia ter sido paulista

ROMULO FRÓES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentre suas inúmeras faces, podemos separar o samba em dois sentidos dominantes: o lugar do prazer, da celebração, do ócio e aquele onde a vida é suspensa, o lugar dos sambas tristes, para trás. É comum associar Adoniran Barbosa ao primeiro sentido aqui descrito, mas o vejo como um ponto cego entre esses dois lugares.
Lembrado mais por letras bem-humoradas, suas canções carregam uma melancolia disfarçada. Comicidade e tragédia se misturam em uma mesma canção. Faz graça para fugir do ressentimento de ter sido posto de lado com o surgimento da Jovem Guarda, "(...) e eu que já fui uma brasa, se assoprarem posso acender de novo".
Faz soar engraçadas histórias trágicas ditas com seu linguajar "errado", aprendido nas ruas do Brás e do Bexiga, onde, como ele mesmo dizia, "o crioulo e o italiano falam igualzinho".
E alertava, "para falar errado, precisa falar certo". Vem daí o sorriso no rosto de quem canta uma história triste como a que narra "Saudosa Maloca".
Percorria toda a cidade com sua música. Era um andarilho, como Nelson Cavaquinho. Mas diferente deste, tinha autonomia sobre seu percurso. Conhecia suas ruas, vilas, favelas, bares, seus personagens e suas histórias. Tudo que via, ouvia, transformava em canções. O "Trem das Onze", o "Viaduto Santa Ifigênia", o "Torresmo à Milanesa", a "Saudosa Maloca".
Comportava-se como um documentarista. Como Noel Rosa, de quem tomou emprestado "Filosofia", samba com o qual foi premiado em um concurso de intérpretes e que finalmente lhe abriu as portas do rádio.
Adoniran se tornou dentro do samba uma de suas figuras mais singulares. Muitos motivos devem ter contribuído para a construção de seu gênio, mas acho determinante o fato de ter nascido em São Paulo.
A cidade, de extrema importância para a música brasileira no que se refere ao seu adensamento, onde desde sempre os movimentos tomam forma e se propagam para o resto do país, tem em Adoniran um dos raros casos de artistas que poderiam representar uma espécie de escola paulista.
O fato de até hoje não termos criado uma clara tradição em música popular pode tê-lo liberado das normas tão rígidas do gênero. Sem ter a quem dar satisfação, sentiu-se livre para suas invenções. Se o samba é carioca e baiano, São Paulo, acusada tantas vezes por sua falta de ginga, gerou um dos mais originais compositores da música popular brasileira. Adoniran era paulista. E só podia ter sido. No fim de sua vida, reclamava que não encontrava mais São Paulo. "O Brás, cadê o Brás? E o Bexiga, cadê?
Mandaram-me procurar a Sé. Não achei. Só vejo carros e cimento armado". Teria reencontrado se tivesse procurado em suas próprias canções.

ROMULO FRÓES, 38, é músico, compositor e um dos nomes que renovam o samba paulista.



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