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Sambista só podia ter sido paulista
ROMULO FRÓES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dentre suas inúmeras faces,
podemos separar o samba em
dois sentidos dominantes: o lugar do prazer, da celebração, do
ócio e aquele onde a vida é suspensa, o lugar dos sambas tristes, para trás. É comum associar Adoniran Barbosa ao primeiro sentido aqui descrito,
mas o vejo como um ponto cego
entre esses dois lugares.
Lembrado mais por letras
bem-humoradas, suas canções
carregam uma melancolia disfarçada. Comicidade e tragédia
se misturam em uma mesma
canção. Faz graça para fugir do
ressentimento de ter sido posto
de lado com o surgimento da
Jovem Guarda, "(...) e eu que já
fui uma brasa, se assoprarem
posso acender de novo".
Faz
soar engraçadas histórias trágicas ditas com seu linguajar "errado", aprendido nas ruas do
Brás e do Bexiga, onde, como
ele mesmo dizia, "o crioulo e o
italiano falam igualzinho".
E alertava, "para falar errado,
precisa falar certo". Vem daí o
sorriso no rosto de quem canta
uma história triste como a que
narra "Saudosa Maloca".
Percorria toda a cidade com
sua música. Era um andarilho,
como Nelson Cavaquinho. Mas
diferente deste, tinha autonomia sobre seu percurso. Conhecia suas ruas, vilas, favelas, bares, seus personagens e suas
histórias. Tudo que via, ouvia,
transformava em canções. O
"Trem das Onze", o "Viaduto
Santa Ifigênia", o "Torresmo à
Milanesa", a "Saudosa Maloca".
Comportava-se como um documentarista. Como Noel Rosa, de quem tomou emprestado
"Filosofia", samba com o qual
foi premiado em um concurso
de intérpretes e que finalmente
lhe abriu as portas do rádio.
Adoniran se tornou dentro
do samba uma de suas figuras
mais singulares. Muitos motivos devem ter contribuído para
a construção de seu gênio, mas
acho determinante o fato de ter
nascido em São Paulo.
A cidade,
de extrema importância para a
música brasileira no que se refere ao seu adensamento, onde
desde sempre os movimentos
tomam forma e se propagam
para o resto do país, tem em
Adoniran um dos raros casos de
artistas que poderiam representar uma espécie de escola
paulista.
O fato de até hoje não
termos criado uma clara tradição em música popular pode tê-lo liberado das normas tão rígidas do gênero. Sem ter a quem
dar satisfação, sentiu-se livre
para suas invenções.
Se o samba é carioca e baiano,
São Paulo, acusada tantas vezes
por sua falta de ginga, gerou um
dos mais originais compositores da música popular brasileira. Adoniran era paulista. E só
podia ter sido. No fim de sua vida, reclamava que não encontrava mais São Paulo. "O Brás,
cadê o Brás? E o Bexiga, cadê?
Mandaram-me procurar a Sé.
Não achei. Só vejo carros e cimento armado". Teria reencontrado se tivesse procurado
em suas próprias canções.
ROMULO FRÓES, 38, é músico, compositor e um
dos nomes que renovam o samba paulista.
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