São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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A última sessão de cinema

João Wainer/Folha Imagem
O porteiro do Cine Ipiranga, José Monteiro Alves de Mattos, retira os cartazes após a derradeira sessão, realizada na última quinta


Fim do Cine Ipiranga amplifica a derrocada melancólica das salas do centro de São Paulo

TEREZA NOVAES
DA REPORTAGEM LOCAL

A história do Cine Ipiranga, bastião cinematográfico do centro de SP, chegou ao fim. Depois do começo glorioso e da decadência dos capítulos finais, o The End surgiu na tela na quinta passada.
Inaugurada em 7 de abril de 1943, a sala 1 desligou o projetor, às 17h10, depois de passar "Entrando Numa Fria Maior Ainda".
Seis pessoas assistiram ao melancólico final. Mas, no início da sessão, dez espectadores ocupavam a platéia de 1.030 lugares.
Enquanto isso, nas calçadas da avenida Ipiranga, onde fica a sala (e as outras duas únicas que ainda funcionam no centro, Marabá e Paris), camelôs vendiam a R$ 10 cópias piratas de "O Grito" e "Desventuras em Série", títulos em cartaz na sala 2; "Entrando Numa Fria Ainda Maior" estava em falta no momento.
Entre os dissidentes da última sessão do Ipiranga, estava um vendedor de 73 anos, que não quis se identificar, talvez por ter dado uma "fugida do trabalho".
"Acho um pecado fechar. Depois da televisão, o cinema acabou muito", lamentou.
O aposentado Ricardo Oliveira, 60, também saiu antes. Freqüentador assíduo de cinemas, ele vai duas vezes por semana, geralmente em shoppings.
Oliveira chegou à última sessão por comodidade, estava no centro e resolveu entrar no Ipiranga.
Mas fez a ressalva: "Se estivesse acompanhado, não viria aqui".
O que o impede de trazer uma companhia é a degradação. "Vi a galeria Olido reformada. Ficou bonita, mas ainda está mal, porque o entorno não mudou."
Na juventude, ele, como muitos outros paulistanos de sua idade, passeou muito pela região, que hoje considera perigosa.
"O centro era um lugar de lazer", conta o aposentado. "Vinha para a cidade no sábado e, depois do cinema, ia dançar nas boates que ficavam na Major Sertório."
Paulo César Mota, 23, desempregado, soube do fechamento da sala e foi um dos últimos a sair. "Gosto do clima antigo, não é comum ver lugar como este."
O espectador que "fechou" a sala foi o aposentado Odair Sposito, 56. Morador de Higienópolis, ele acha que "será bom", se o local for reformado e reaberto.
"Aqui está uma decadência total. Venho porque particularmente não gosto das salas pequenas dos shoppings. A sala grande tem um "tchan'", afirma Sposito.
Segundo ele, o valor do ingresso (de R$ 5 a R$ 7) é outro atrativo.
Sposito acredita que uma saída para a decadência do centro seriam boas salas de cinema.
"Hoje o centro é perigoso. À noite, não venho ao cinema aqui, porque tenho receio."
O perigo estava à espreita mesmo dentro da sala. Os "gaviões", homens que molestam outros espectadores, eram problema corriqueiro no Ipiranga.
"Em quase todas as sessões, tinha que tirar alguém que estava se masturbando perto de outras pessoas", relata Nelson Vila Nova, há dois anos trabalhando no cine.
Nem sempre foi assim. José Monteiro Alves de Mattos, 60, porteiro da sala principal há quatro anos, recorda-se do luxo das cadeiras "pullman" (revestidas de veludo) e do glamour dos anos 50.
"Desde 1958 vinha aqui. Tinha que usar terno e gravata. Era um luxo só."
Monteiro, como é conhecido, assistiu no Ipiranga a "Ben Hur", "Os Dez Mandamentos" e filmes da Vera Cruz. "Só filmaço", diz.
"Isso aqui brilhava, havia tapete vermelho no chão e um pianista ficava ali [no mezanino do hall], tocando entre as sessões."
Dos freqüentadores que viu passar por sua catraca, ele destaca "pelo menos 15 casais que se conheceram aqui e vieram para relembrar". Havia também um homem bem vestido que chegava nas primeiras sessões e dormia até a última. "Ele sentava no fundo, já sabia onde ele ficava e tinha que ir lá para tirá-lo no fim."
O futuro do Cine Ipiranga é uma incógnita. Os funcionários, demitidos na semana passada, diziam que ele seria reformado. A Alvorada se recusou a falar com a Folha sobre os planos para a sala.
O imóvel é tombado pelo Patrimônio Histórico do município e para reformá-lo será preciso pedir autorização da prefeitura. Por ora, aquele que já foi considerado o cinema mais luxuoso da América Latina fica apagado.


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