São Paulo, sábado, 13 de fevereiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Na Argélia, em busca de Albert Camus

No cinquentenário da morte do autor franco-argelino, colunista da Folha visita locais em que ele viveu e que serviram como fonte para sua ficção e seus ensaios


MANUEL DA COSTA PINTO
EM ARGEL

Encontrar hoje a Argélia de Albert Camus (1913-1960) poderia ser uma ilusão. Depois da guerra que pôs fim à colonização francesa, em 1962, o país se arabizou velozmente: mantém o francês como língua de contato, mas o árabe é o idioma das ruas e os "pieds noirs" (pés negros, os franceses argelinos) são presença minoritária.
Nada parecia indicar um encontro com Meursault ou Rieux, protagonistas de "O Estrangeiro" (1942) e "A Peste" (1947), em Argel, a capital do país, ou Orã.
A viagem coincidiu com os 50 anos da morte de Camus (no dia 4 de janeiro de 1960, num acidente de carro na França) e começou à sombra do passado recente (nos anos 90, a Argélia foi devastada pelo terrorismo após a anulação de eleições vencidas por radicais da Frente Islâmica de Salvação).
Em Marselha, dois dias antes de partir para Argel, um sujeito me dá carona e se apresenta como cabila. Surpreende-se com o fato de eu conhecer essa etnia de tribos berberes, anteriores aos árabes no Magreb e tema da reportagem "Miséria da Cabília", escrita por Camus em 1939. Surpreende-se mais com o fato de que vá visitar seu país: "Cuidado por lá!".
Um país hostil aos estrangeiros e sem vestígios da civilização solar celebrada por Camus? Os fantasmas se dissipam mal se chega em Argel.

Neorrealismo
As fachadas do "bairro europeu" preservam a arquitetura colonial: prédios antigos cuja uniformidade lembra a Europa do pós-Guerra. Esse cenário do neorrealismo italiano despeja nas ruas uma turba que circula fazendo algazarra, mulheres com véu em meio a outras tantas, que respondem às cantadas ostensivas e ingênuas de rapazes com pose viril. Nada muito diferente da "multidão tagarelante que acaba por escoar sobre os bulevares em frente ao mar", descrita por Camus em seu "Pequeno Guia para Cidades sem Passado" (em "O Verão", de 1954).
As feições magrebinas diferem da "raça bastarda" dos franceses miscigenados, mas a mesma atmosfera expansiva, mediterrânea, quebra qualquer imagem preconcebida. São superficialidades turísticas, ainda que o guia seja esse escritor que frequentava o Café des Facultés, na rua Michelet (atual Didouche Mourad), a mesma onde morava o tio Acault, açougueiro anarquista que fez Camus ler Gide e Valéry.
O fato é que as "cidades sem passado" guardam poucos rastros temporais e trocam a memória pela lassidão e pela banalidade cotidiana: Camus extraiu dessa indiferença à história e do apego à paisagem argelina uma ética pessoal, austera e hedonista.
Nas ruas de Argel, o constrangimento quando se fala da década dominada pelo GIA (Grupo Islâmico Armado) surge ao lado de uma sensação de alívio, como se todos preferissem a monotonia da Casbah.
O labiríntico bairro árabe guarda as marcas da transformação política (sinagogas convertidas em mesquitas) e da guerra de independência (como um beco conhecido como rua do Inferno, por ter sido rota de fuga dos nacionalistas). Mas suas casas caiadas em forma de cubo, pátios internos, vielas estreitas desembocando numa feira, que recende a peixe e fígado de carneiro, parecem estagnados no tempo em que o jovem Camus escreveu "A Casa Mourisca" (1933).
Não é difícil imaginar Meursault no balcão do apartamento da rua Lyon 93, contemplando o torpor do domingo no bairro de Belcourt, mesmo se quase ninguém em Argel saiba que ali morou o autor de "O Estrangeiro". Difícil é acreditar, como alardeado, que Camus tenha escrito "A Peste" na mesa do restaurante Cintra, em Orã, em cujas paredes pendem retratos canhestros, baseados em fotos. Mas o perfil da cidade portuária, "construída em caracol sobre um planalto, quase fechada para o mar", resta intacto do alto do forte de Santa Cruz.
Foi entretanto numa cidade sem fisionomia humana, Tipasa, que Camus encontrou sua fonte, "a meio caminho entre a miséria e o sol". É nesse conjunto de ruínas romanas dando sobre o Mediterrâneo que está a estela funerária com uma frase extraída de "Núpcias" (1938): "Aqui compreendo o que se denomina glória: o direito de amar sem medida".


Texto Anterior: Rodapé Literário: Fábulas distópicas
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.