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LIVROS
Na Argélia, em busca de Albert Camus
No cinquentenário da morte do autor franco-argelino, colunista da Folha visita locais em que ele viveu e que serviram como fonte para sua ficção e seus ensaios
MANUEL DA COSTA PINTO
EM ARGEL
Encontrar hoje a Argélia de
Albert Camus (1913-1960) poderia ser uma ilusão. Depois da
guerra que pôs fim à colonização francesa, em 1962, o país se
arabizou velozmente: mantém
o francês como língua de contato, mas o árabe é o idioma das
ruas e os "pieds noirs" (pés negros, os franceses argelinos)
são presença minoritária.
Nada parecia indicar um encontro com Meursault ou
Rieux, protagonistas de "O Estrangeiro" (1942) e "A Peste"
(1947), em Argel, a capital do
país, ou Orã.
A viagem coincidiu com os 50
anos da morte de Camus (no
dia 4 de janeiro de 1960, num
acidente de carro na França) e
começou à sombra do passado
recente (nos anos 90, a Argélia
foi devastada pelo terrorismo
após a anulação de eleições
vencidas por radicais da Frente
Islâmica de Salvação).
Em Marselha, dois dias antes
de partir para Argel, um sujeito
me dá carona e se apresenta como cabila. Surpreende-se com
o fato de eu conhecer essa etnia
de tribos berberes, anteriores
aos árabes no Magreb e tema da
reportagem "Miséria da Cabília", escrita por Camus em
1939. Surpreende-se mais com
o fato de que vá visitar seu país:
"Cuidado por lá!".
Um país hostil aos estrangeiros e sem vestígios da civilização solar celebrada por Camus?
Os fantasmas se dissipam mal
se chega em Argel.
Neorrealismo
As fachadas do "bairro europeu" preservam a arquitetura
colonial: prédios antigos cuja
uniformidade lembra a Europa
do pós-Guerra. Esse cenário do
neorrealismo italiano despeja
nas ruas uma turba que circula
fazendo algazarra, mulheres
com véu em meio a outras tantas, que respondem às cantadas
ostensivas e ingênuas de rapazes com pose viril. Nada muito
diferente da "multidão tagarelante que acaba por escoar sobre os bulevares em frente ao
mar", descrita por Camus em
seu "Pequeno Guia para Cidades sem Passado" (em "O Verão", de 1954).
As feições magrebinas diferem da "raça bastarda" dos
franceses miscigenados, mas a
mesma atmosfera expansiva,
mediterrânea, quebra qualquer
imagem preconcebida. São superficialidades turísticas, ainda
que o guia seja esse escritor que
frequentava o Café des Facultés, na rua Michelet (atual Didouche Mourad), a mesma onde morava o tio Acault, açougueiro anarquista que fez Camus ler Gide e Valéry.
O fato é que as "cidades sem
passado" guardam poucos rastros temporais e trocam a memória pela lassidão e pela banalidade cotidiana: Camus extraiu dessa indiferença à história e do apego à paisagem argelina uma ética pessoal, austera
e hedonista.
Nas ruas de Argel, o constrangimento quando se fala da
década dominada pelo GIA
(Grupo Islâmico Armado) surge ao lado de uma sensação de
alívio, como se todos preferissem a monotonia da Casbah.
O labiríntico bairro árabe
guarda as marcas da transformação política (sinagogas convertidas em mesquitas) e da
guerra de independência (como um beco conhecido como
rua do Inferno, por ter sido rota de fuga dos nacionalistas).
Mas suas casas caiadas em forma de cubo, pátios internos,
vielas estreitas desembocando
numa feira, que recende a peixe e fígado de carneiro, parecem estagnados no tempo em
que o jovem Camus escreveu
"A Casa Mourisca" (1933).
Não é difícil imaginar Meursault no balcão do apartamento
da rua Lyon 93, contemplando
o torpor do domingo no bairro
de Belcourt, mesmo se quase
ninguém em Argel saiba que ali
morou o autor de "O Estrangeiro". Difícil é acreditar, como
alardeado, que Camus tenha
escrito "A Peste" na mesa do
restaurante Cintra, em Orã, em
cujas paredes pendem retratos
canhestros, baseados em fotos.
Mas o perfil da cidade portuária, "construída em caracol sobre um planalto, quase fechada
para o mar", resta intacto do alto do forte de Santa Cruz.
Foi entretanto numa cidade
sem fisionomia humana, Tipasa, que Camus encontrou sua
fonte, "a meio caminho entre a
miséria e o sol". É nesse conjunto de ruínas romanas dando
sobre o Mediterrâneo que está
a estela funerária com uma frase extraída de "Núpcias"
(1938): "Aqui compreendo o
que se denomina glória: o direito de amar sem medida".
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