São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FOLCLORE
Artista pernambucano teve que vender seus bonecos há 18 anos e volta com a peça infantil "Cadê o Meu Herói'
Mestre Saúba retoma a arte do mamulengo

VALMIR SANTOS
especial para a Folha

Carpina, cidade pernambucana a 65 km de Recife, viveu nesta semana o seu dia mais animado de Carnaval. O bloco do Papangu atraiu milhares de pessoas, entre elas mestre Saúba, o criador do boneco que dá nome ao bloco.
"Você aí em São Paulo já ouviu falar de alguém ou alguma coisa chamada Papangu?", pergunta Saúba, ou Anttônio Elias da Silva, 46. "Não tem significado algum, mas é o nome que o povo escolheu." O boneco Papangu mede 2 m de altura e pode dobrar de tamanho quando carregado no bloco.
Analfabeto, autodidata ("devo parte do meu aprendizado a Deus e a mestre Pedro Rosa, já morto"), Saúba é um multiartista popular. Atua como dançarino, músico, compositor, poeta, ventríloquo, artesão, enfim, habilidades gestadas a partir do seu ofício maior: mamulengueiro.
Dona Quitéria, Mané Pacaru, Dona Lilia, João Gago, Simão, Coquinho, Laré e Dona Liprosina são alguns dos personagens nascidos pelas "mãos molengas" desse pernambucano de Carpina que já trabalhou com Alceu Valença, Marisa Monte e Antônio Nóbrega. Seus bonecos também já apareceram na Globo ("Roque Santeiro", "Som Brasil") e exposições pelo mundo.
Mas sãos louros do passado. Faz 18 anos que Saúba (a saúva no Nordeste) não cria e nem brinca com seus mamulengos.
Ele parou depois que se viu obrigado a vender duas caixas com 56 bonecos produzidos ao longo da vida. Não recorda a quantia, mas destinou o dinheiro para o pagamento de sua dívida com os "fogazões", como são chamados os artistas que se apresentavam (ou "jogavam") com ele em Carpina.
A prefeitura não lhe pagava pelas apresentações contratadas, e ele tampouco tinha condições de garantir o ganha-pão dos colegas. "Para não fazer questão com ninguém", diz, vendeu tudo aos donos de uma usina de açúcar da cidade. "Foi uma loucura que fiz", diz.
Dias depois, em visita à casa dos compradores, Saúba chorou quando viu alguns mamulengos pendurados na parede, "mortos, sem mensagem alguma". "Era como se cada um deles dissessem para mim: "Rapaz, tu brincavas tanto comigo e agora me deixas abandonado em casa de barão. Eu era satisfeito na vida e hoje me acho preso, acorrentado". Doeu muito."
"Cada mamulengo é como um catimbó, uma magia; cada um tem sua voz, sua música, sua embolada; cada um dá a sua mensagem espiritual; cada um é uma vida."
Saúba descobriu São Paulo há cinco anos. Mora em Itapecerica da Serra (SP), cidade próxima a Embu das Artes, onde vende esculturas na feira de artesanatos.
Somente no ano passado o fantasma dos bonecos vendidos começou a desassombrar o artista. Convidado a trabalhar na montagem da peça infantil "Cadê o Meu Herói", em cartaz no Centro Cultural São Paulo, ele enfim resgatou a lida com a escultura de bonecos, dessa vez em intercâmbio com os bonequeiros Yang Feng (chinês) e Horácio Tignarelli (argentino).
Foi a deixa para irromper a vontade de brincar. "Quero recriar todos os meus mamulengos, juntar zabumbeiro, um "triangueiro" e mostrar para o povo que a minha arte não morreu", anuncia.


Texto Anterior: Incentivo: Cinema pede que FHC reitere apoio
Próximo Texto: Saúba teve "genialidade abafada'
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.