São Paulo, terça-feira, 13 de março de 2001

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ARNALDO JABOR

Itamaraty tem de lutar contra a "síndrome do sapo"

Você já negociou com americano? Eu já. Claro que no micromundo do cinema, quando vendi filmes para eles. E vos digo: não há a mais remota chance de "colher-de-chá", de simpatia, de "quebra-meu-galho". Não existe isso. Os ingênuos marxistazinhos do cinema viam neles complôs do capitalismo querendo nos "alienar ideologicamente", e eles só pensavam no tutu do mercado. Ideologia para eles é só isso. Eles não negociam para chegar a um objetivo; o objetivo mercantil vem antes, e tudo vale para alcançá-lo, até a guerra.
Sobre isso, houve dois fatos importantíssimos.
Primeiro, um artigo extraordinário do embaixador Rubens Ricupero na Folha de 11 de fevereiro de 2001, em plena guerra da vaca louca. Depois, a entrevista para o "Valor" do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, autor do livro "500 Anos de Periferia", disponível no site www.global21. com.br. Essa entrevista causou alvoroço entre os diplomatas, zonzos entre carreira e liberdade, hesitantes entre um chic internacionalismo e a dura defesa de nosso país. Negam, desconversam, mas essa entrevista quase causou a "lei da mordaça" na casa de Rio Branco, saudoso defensor de nossas fronteiras.
Claro que o "bullshit" neo-liberal-global condena falar em "imperialismo" hoje como sendo uma gafe. Fazem boquinha de nojo: "Ai, que antigo!!!". Mas imperialismo é ainda a melhor palavra. Que é, senão "imperialismo", a política de sabotagem às patentes e aos nossos genéricos, pela indústria farmacêutica norte-americana, agora com apoio de Bush, eleito com a grana deles? (Prepare-se, Zé Serra, que eles vêm aí com a sétima cavalaria!) Os dois embaixadores, Pinheiro Guimarães e Ricupero, alertam para a necessidade de enfrentarmos o que pode vir a ser a definição de nosso desgraçado e dependente destino no século 21 todo. A Alca pode ser nossa sentença de morte econômica.
Rubens Ricupero mostra que não adianta nosso festivo nacionalismo contra a vaca louca, protestos contra protecionismo e tarifas se não atentarmos para regras gerais como as da OMC, leoninas e a favor do G7, regras que já aceitamos de cara sorridente e deslumbrada. Ele diz: "É preciso vigilância reforçada na negociação de normas (gerais de comércio) se queremos, no futuro, evitar sofrimentos como este que amargamos no momento. E jamais aceitar de novo, sob qualquer pretexto, delegar a organizações de que não fazemos parte (...) a tarefa de definir para nós as regras que devemos seguir". Ele diz que, com os subsídios proibidos hoje pela OMC, "Delfim Neto não poderia ter estimulado a exportação de manufaturados ou, se JK ressuscitasse, não poderia mais implantar a indústria automobilística..."
O embaixador Pinheiro Guimarães acrescenta seu alarme:
"A Alca dissolverá o Mercosul. (...) O que está em jogo para o Uruguai e o Paraguai e mesmo para a Argentina não é o mesmo que está em jogo estratégica e economicamente para o Brasil. O projeto da Alca atende aos interesses estratégicos dos Estados Unidos para a América do Sul, mas afeta muito em especial o Brasil, devido às nossas dimensões territoriais, populacionais e ao PIB.(...) Com a Alca, os Estados Unidos realizariam seu desígnio histórico de incorporação subordinada da América Latina a seu território econômico e à sua área de influência político-militar.(...) Não há, na política e no direito internacional, nenhum processo de negociação, em nenhum foro, em nenhuma região, em nenhuma organização, que tenha de ser aceito passiva e de forma submissa pela sociedade como irreversível."
Ou seja, podemos dizer "não".

O sapo e a cobra
Acho que um "choque de capitalismo" pode nos arrancar do atraso sim; acho que a "instantaneidade" do mundo de hoje pode fazer algum bem ao caos paralítico do Brasil patrimonialista. Mas, entre remédio e veneno, há quase nada. Ignorantes de direita e de esquerda não vêem isso. Saudosistas da utopia sabotam as reformas e se agarram ao passado, enquanto deslumbrados liberais abrem as pernas e anseiam pelo estupro do futuro.
A verdade óbvia, solar, é que o plano da Alca traz embutido o nosso destino -feito por eles. Isto é o fato histórico mais grave, mais assustador para nosso futuro.
A sensação que tenho é a história do sapo e da cobra. Já viram como se alimentam as jibóias e as jararacas? Joga-se um sapinho na jaula. O bichinho pula de pânico pra todo lado e a cobra fica imóvel, olhando. Ele pula daqui, pula para lá e acaba hipnotizado, seduzido, entrando obediente na boca aberta da serpente.
Tenho pavor de que isso nos aconteça. Nossos 500 anos de dependência, de deslumbramento e de ignorância apontam para isso. Claro que há uma consciência difusa do perigo; claro que dentro e fora do Itamaraty se fala em nossos "interesses comerciais", em "integração com a Europa e a Ásia", em "defesa do Mercosul", mas o perigo é imenso porque os brasileiros não sabem negociar e, por abstratos, bacharelescos e molengas, se perdem em bravatas vazias para compensar medo e despreparo técnico. Corremos o grave risco da "síndrome do sapinho", de morrer seduzidos pela boca da cobra, até vagamente honrados com a devoração.
O essencial é considerar a Alca o problema número um do país, nosso terremoto, nosso dilúvio, nosso perigo de extinção. É fundamental que o Itamaraty (e todos) se toque para o assustador horizonte e não empurre nosso destino histórico com a barriga.
O ministro Celso Lafer obtemperou: "A Alca não é destino, é opção". Espero que sim. Negociadores, diplomatas progressistas, uni-vos! Temos tudo a perder.


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