São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"ARMANCE"

Espécie de "ensaio geral" para obras posteriores, livro combina observação da sociedade e análise psicológica

Stendhal enraíza o amor na história social

Divulgação
"Estudo para "A Morte de Sardanapalo'" (1826), de Eugène Delacroix, contemporâneo de Stendhal


JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se a palavra é amor, ninguém na literatura ocidental entendeu tanto do assunto quanto o francês Henri Beyle (1783-1842), mais conhecido como Stendhal.
Além de dedicar a ele um célebre estudo ("De l'Amour", 1822), o escritor esmiuçou esse sentimento esquivo e avassalador em um punhado de romances notáveis, incluindo as obras-primas "O Vermelho e o Negro" (1930) e "A Cartuxa de Parma" (1839). Desnecessário dizer que ele próprio teve, também, uma conturbada vida amorosa.
Mas o amor, para Stendhal, não era uma paixão abstrata e imutável, desvinculada das condições sociais e históricas à sua volta.
Pelo contrário. Já em sua primeira abordagem ficcional do tema, o romance "Armance" (1827) -lançado agora no Brasil pela Estação Liberdade-, o escritor enraíza o gesto amoroso num contexto muito concreto, complexo e contingente.
Esse contexto -assim como ocorrerá em "O Vermelho e o Negro"- é o da Restauração (1815-30), período de retrocesso político e religioso que se seguiu às conquistas democrático-burguesas da Revolução Francesa e da expansão napoleônica.
É contra esse pano de fundo que a bela Armance de Zohiloff e seu primo Octave de Malivert vêem surgir entre eles um amor profundo e desditoso.
A situação social dos dois jovens, em princípio, é o que os afasta. Octave é um visconde, cuja família acaba de ser ressarcida com uma polpuda "indenização" aos nobres atingidos pela Revolução. Armance é a órfã empobrecida de uma francesa com um oficial russo e vive quase como uma dama de companhia junto a sua tia (e tia de Octave), madame de Bonnivet.
Cada um à sua maneira, os dois, ambos puros e idealistas, não se encaixam na ordem estabelecida, em que o desejo de riqueza e ascensão iguala nobres e burgueses, sob as bênçãos da igreja mais retrógrada, representada pelos jesuítas.
Octave sofre pressões para "casar bem", Armance teme ser vista como uma alpinista social. Por conta disso, eles demoram a descobrir seus sentimentos recíprocos e, quando os descobrem, se sentem impotentes para fazê-los vingar.
Mesmo uma herança inesperada recebida por Armance não basta para desfazer a rede de intrigas e impedimentos que embaraça o jovem casal.
Mas não são apenas os fatores externos que atrapalham. Quando o caminho parece aberto para a união dos dois, o caráter sombrio de Octave (um "segredo terrível" que o impede de ser feliz) acaba se servindo de um pretexto fútil para pôr tudo a perder.
Esse "segredo terrível", jamais revelado no romance, é desvendado numa carta de Stendhal a Prosper Mérimée (incluída na bem cuidada edição brasileira): Octave é impotente.
A maneira franca, quase grosseira, como o autor aborda o assunto na carta levou muitos leitores e críticos a lerem o romance como uma mera "sátira do amor romântico", aliada a uma crítica da mesquinhez dos valores sociais da época.
Mas "Armance" é muito mais que isso. É um belíssimo "ensaio geral" de Stendhal para suas grandes obras e já demonstra o talento de combinar observação social e análise psicológica que faria do autor um dos fundadores do romance moderno.
Embora "Armance" seja o primeiro romance de Stendhal, o autor não era propriamente um iniciante quando o escreveu.
Tinha 44 anos e já publicara uma dezena de livros, entre eles uma história da pintura na Itália, uma biografia de Rossini e um estudo sobre Racine e Shakespeare, além de volumes de viagem.
Era também um homem vivido e cosmopolita. Servira no Exército napoleônico e na diplomacia, estivera na Rússia, na Itália e na Inglaterra. O exercício constante do jornalismo (para publicações inglesas) e da tradução depuraram seu estilo de qualquer resquício de firula ou beletrismo. Sua escrita tornou-se direta e expressiva como poucas, qualidades que já se notam em "Armance" e que se intensificariam nos romances e novelas seguintes.
Claro que entre "Armance" e "O Vermelho e o Negro" (que recentemente recebeu uma nova e belíssima tradução, pela Cosac & Naify) existe um salto de qualidade. O que muda entre os dois livros, separados um do outro por três anos, é o tratamento dado aos personagens secundários.
Em "Armance" eles ainda são um tanto planos, unidimensionais, contrastando com a composição sutil dos protagonistas. Em "O Vermelho e o Negro", todo personagem, por menor que seja seu papel na trama, é pleno de sombras e nuances.
Mas no primeiro romance já está presente o motivo central da obra de Stendhal: o choque entre as potencialidades do indivíduo -anunciadas pela Revolução Francesa e seu desdobramento napoleônico- e as constrições da ordem social.


Armance
    
Autor: Stendhal
Tradução: Leila Aguiar Costa
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 28 (287 págs.)



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