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LIVROS/LANÇAMENTOS
"ARMANCE"
Espécie de "ensaio geral" para obras posteriores, livro combina observação da sociedade e análise psicológica
Stendhal enraíza o amor na história social
Divulgação
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"Estudo para "A Morte de Sardanapalo'" (1826), de Eugène Delacroix, contemporâneo de Stendhal |
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Se a palavra é amor, ninguém
na literatura ocidental entendeu tanto do assunto quanto o
francês Henri Beyle (1783-1842),
mais conhecido como Stendhal.
Além de dedicar a ele um célebre
estudo ("De l'Amour", 1822), o escritor esmiuçou esse sentimento
esquivo e avassalador em um punhado de romances notáveis, incluindo as obras-primas "O Vermelho e o Negro" (1930) e "A Cartuxa de Parma" (1839). Desnecessário dizer que ele próprio teve,
também, uma conturbada vida
amorosa.
Mas o amor, para Stendhal, não
era uma paixão abstrata e imutável, desvinculada das condições
sociais e históricas à sua volta.
Pelo contrário. Já em sua primeira abordagem ficcional do tema, o
romance "Armance" (1827)
-lançado agora no Brasil pela Estação Liberdade-, o escritor
enraíza o gesto amoroso num contexto muito concreto, complexo e
contingente.
Esse contexto -assim como
ocorrerá em "O Vermelho e o Negro"- é o da Restauração (1815-30), período de retrocesso político
e religioso que se seguiu às conquistas democrático-burguesas da
Revolução Francesa e da expansão
napoleônica.
É contra esse pano de fundo que
a bela Armance de Zohiloff e seu
primo Octave de Malivert vêem
surgir entre eles um amor profundo e desditoso.
A situação social dos dois jovens,
em princípio, é o que os afasta. Octave é um visconde, cuja família
acaba de ser ressarcida com uma
polpuda "indenização" aos nobres
atingidos pela Revolução. Armance é a órfã empobrecida de uma
francesa com um oficial russo e vive quase como uma dama de companhia junto a sua tia (e tia de Octave), madame de Bonnivet.
Cada um à sua maneira, os dois,
ambos puros e idealistas, não se
encaixam na ordem estabelecida,
em que o desejo de riqueza e ascensão iguala nobres e burgueses,
sob as bênçãos da igreja mais retrógrada, representada pelos jesuítas.
Octave sofre pressões para "casar bem", Armance teme ser vista
como uma alpinista social. Por
conta disso, eles demoram a descobrir seus sentimentos recíprocos e, quando os descobrem, se
sentem impotentes para fazê-los
vingar.
Mesmo uma herança inesperada
recebida por Armance não basta
para desfazer a rede de intrigas e
impedimentos que embaraça o jovem casal.
Mas não são apenas os fatores
externos que atrapalham. Quando
o caminho parece aberto para a
união dos dois, o caráter sombrio
de Octave (um "segredo terrível"
que o impede de ser feliz) acaba se
servindo de um pretexto fútil para
pôr tudo a perder.
Esse "segredo terrível", jamais
revelado no romance, é desvendado numa carta de Stendhal a Prosper Mérimée (incluída na bem
cuidada edição brasileira): Octave
é impotente.
A maneira franca, quase grosseira, como o autor aborda o assunto
na carta levou muitos leitores e
críticos a lerem o romance como
uma mera "sátira do amor romântico", aliada a uma crítica da mesquinhez dos valores sociais da
época.
Mas "Armance" é muito mais
que isso. É um belíssimo "ensaio
geral" de Stendhal para suas grandes obras e já demonstra o talento
de combinar observação social e
análise psicológica que faria do
autor um dos fundadores do romance moderno.
Embora "Armance" seja o primeiro romance de Stendhal, o autor não era propriamente um iniciante quando o escreveu.
Tinha 44 anos e já publicara uma
dezena de livros, entre eles uma
história da pintura na Itália, uma
biografia de Rossini e um estudo
sobre Racine e Shakespeare, além
de volumes de viagem.
Era também um homem vivido
e cosmopolita. Servira no Exército
napoleônico e na diplomacia, estivera na Rússia, na Itália e na Inglaterra. O exercício constante do jornalismo (para publicações inglesas) e da tradução depuraram seu
estilo de qualquer resquício de firula ou beletrismo. Sua escrita tornou-se direta e expressiva como
poucas, qualidades que já se notam em "Armance" e que se intensificariam nos romances e novelas
seguintes.
Claro que entre "Armance" e "O
Vermelho e o Negro" (que recentemente recebeu uma nova e belíssima tradução, pela Cosac &
Naify) existe um salto de qualidade. O que muda entre os dois livros, separados um do outro por
três anos, é o tratamento dado aos
personagens secundários.
Em "Armance" eles ainda são
um tanto planos, unidimensionais, contrastando com a composição sutil dos protagonistas. Em
"O Vermelho e o Negro", todo
personagem, por menor que seja
seu papel na trama, é pleno de
sombras e nuances.
Mas no primeiro romance já está presente o motivo central da
obra de Stendhal: o choque entre
as potencialidades do indivíduo
-anunciadas pela Revolução
Francesa e seu desdobramento
napoleônico- e as constrições da
ordem social.
Armance
Autor: Stendhal
Tradução: Leila Aguiar Costa
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 28 (287 págs.)
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