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FERREIRA GULLAR
Barulhos
Disse certa vez que dei o
azar de nascer na época da
caixa de som. Sim, porque, antigamente, até os meus 21 anos,
quando vivia em São Luís do Maranhão, o barulho que eu mais
ouvia era do vento na copa das
mangueiras e dos coqueiros, um
rumorejar constante que atravessava as manhãs e as tardes iluminadas de sol e que era o som do
dia, como há o som das cachoeiras. O dia jorrando.
Pois bem, isso talvez explique
minha intolerância com os barulhos de hoje, que excedem o nível
de decibéis que meus ouvidos toleram. E, embora se fale da necessidade de reduzir a poluição sonora, o que observo é a intenção
deliberada de aumentá-la.
Senão, vejamos: que tráfego nas
ruas entupidas de veículos provoque barulho é inevitável, mas o
mesmo não se pode dizer do rock
a soar dentro do supermercado
ou no restaurante do hotel às 7h.
Essa música tornou-se uma praga
que nos persegue por todos os lugares, porque se descobriu que todos nós adoramos música jovem e
queremos ouvi-la em todos os
momentos da vida e em todos os
lugares.
Enquanto as autoridades dizem
tomar medidas para evitar a poluição sonora, na prática, o que
percebo é uma guerra ao silêncio.
E, como o silêncio induz a pensar,
tendo a concluir que essa barulheira deliberada é para fugir à
reflexão. Trata-se de uma sociedade que prefere se atordoar a se
conhecer. O que coincide com os
interesses da publicidade comercial, que, como se sabe, quer nos
levar a consumir a qualquer preço, ou seja, sem pensar nos juros
que desabarão sobre nossa cabeça.
Mas, afora isso, há os evangélicos e, agora, certas igrejas católicas que travam com aqueles uma
ruidosa disputa de público, cada
qual berrando mais alto do que o
outro. É verdade que os católicos
pregam menos que os evangélicos, mas, em compensação, se
acham no direito de invadir nossa privacidade, de nos impedir de
ler, de ouvir a música que queremos ouvir ou de simplesmente ficar no silêncio de nosso recolhimento.
Os evangélicos vão para as praças com seus alto-falantes e ali ficam a gritar citações bíblicas e a
nos ameaçar com o fogo do Inferno. No caso da Igreja Católica, citarei dois exemplos de abuso: o de
uma igreja no Flamengo que
transmite para a rua todas as
missas e cantorias do dia a partir
das 6h; o outro é uma igreja nas
Laranjeiras, com um alto-falante
poderosíssimo no alto da torre,
que, à hora do Ângelus, irradia a
"Ave-Maria" de Gonod numa altura tal que leva a vizinhança às
raias do desespero.
Tanto num caso como noutro,
moradores foram pedir ao pároco
que reduzisse o volume dos alto-falantes e receberam a seguinte
resposta: "Pessoas que fazem tal
pedido só podem ser inimigas da
religião". Claro, quem fala em
nome de Deus tem sempre razão e
tudo pode fazer para o bem pecador, ainda que este não concorde
com a ajuda.
Mas há também quem atue em
nome do bem comum e, por essa
razão, se sinta também com o direito de nos atormentar. Cito um
exemplo: haverá barulho mais insuportável que o das sirenes dos
caminhões do Corpo de Bombeiros, dos carros da polícia e das
ambulâncias? Não resta dúvida
de que devemos todos dar passagem a eles, porque um minuto
que percam pode significar a perda de muitas vidas humanas.
Mas não precisam de sirenes tão
desesperadoramente altas a produzir emissões acústicas que
ameaçam perfurar nossos tímpanos. E tudo porque uma empresa
inventou um tipo de sirenes mais
poderoso do que aqueles antigos e
muito mais caros. Certa ocasião,
ia eu no meu carro quando, de repente, logo atrás de mim, soou
um silvado atordoante, que quase
me fez jogar o carro contra um
outro ao meu lado. Era uma ambulância.
E quando você descobre que,
sob seu quarto de dormir, existe
uma boate? Isso aconteceu comigo faz muitos anos, ao me mudar
de Ipanema para Copacabana.
Só então entendi por que o apartamento estava tão barato.
Passado os primeiros instantes
de perplexidade ("Estou ferrado!
Como é que não procurei ver o
que havia embaixo do apartamento?"), desci até a rua, entrei
na boate e pedi para falar com o
responsável. Expliquei-lhe que
meu quarto de dormir ficava exatamente em cima de sua boate e
que, com o som naquela altura,
não podia dormir. Ele respondeu
que, se abaixasse o som, os fregueses iriam embora. "Mas eu é que
não posso ficar sem dormir", repliquei indignado.
- Então vá se queixar à polícia, respondeu-me ele.
No dia seguinte, ao comentar o
ocorrido com a síndica do prédio,
ouvi dela que o dono da boate,
além do mais, era ingrato, uma
vez que a chave de luz de sua casa
de shows ficava em nosso edifício.
Eu mal acreditei no que ouvira.
- Ah, é? Então o problema está
resolvido, disse-lhe eu.
Naquela noite, quando a música da boate começou, eu fui até a
caixa de luz e desliguei a chave da
boate. Logo o sujeito apareceu à
porta do edifício e pediu ao porteiro para deixá-lo entrar, pois o
fusível de sua boate certamente
queimara. Apresentei-me diante
dele e disse que não se tratava disso: eu é que desligara a luz. O homem, agora conciliador, pediu-me que religasse a corrente, pois a
boate estava cheia de fregueses.
- Vá se queixar à polícia, respondi eu, gloriosamente.
Acontece que o tal sujeito era da
polícia.
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