São Paulo, sábado, 13 de março de 2010

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ANÁLISE

Qualquer um pode ganhar ou perder

ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vinte e quatro horas antes do Oscar, um punhado de cinéfilos recalcitrantes (os poucos que não tinham se rendido aos encantos de "O Segredo dos Seus Olhos", cuja façanha máxima não foi atrair 2,5 milhões de espectadores, mas seduzir a crítica, que há dez anos denegria o diretor) proclamava que Juan José Campanella não poderia derrotar Michael Haneke.
Imunes a qualquer forma de nacionalismo -afinal, a única pátria que reconhecem é o cinema-, os cinéfilos, como acontece com os escritores antes de cada entrega do Nobel de Literatura, pecavam pela ingenuidade e se contradiziam: continuavam a menosprezar em silêncio a Academia de Hollywood (que, afinal, é o "aparato institucional de uma indústria hegemônica" etc.), mas ao mesmo tempo a confundiam com o tribunal que colocaria as coisas em seus devidos lugares -uma espécie de Suprema Corte de Justiça que não hesitaria em decidir em favor dos "verdadeiros" valores cinematográficos.
Ganhou "O Segredo dos Seus Olhos". Pode ser que o veredicto da Academia queira dizer algo, mas sem dúvida não tem nada a ver com uma questão de valores cinematográficos. Tem a ver com a competência, com um modelo esportivo de seleção e consagração que é quase tão hegemônico na cultura contemporânea quanto a indústria de Hollywood quando se trata de promover modelos cinematográficos.
Um filme não costuma ganhar porque é melhor -ele é melhor porque ganha. Os méritos não são a condição da vitória, mas sua consequência retroativa. Ademais, quando as únicas alternativas são ganhar ou perder, qualquer um pode ganhar ou perder.
A equipe de "O Segredo dos Seus Olhos" compreendeu perfeitamente a lógica da conjuntura. Não foi por nada que a primeira comunicação pública que seus integrantes estabeleceram com a Argentina na segunda-feira, já com os 3,85 quilos de estanho folheados a ouro em seu poder, não foi com autoridades do cinema, nem com críticos ou jornalistas, mas com Gabriel Hauche, o atacante do Racing Club de Avellaneda que, no domingo, enquanto na Califórnia o teleprompter apressava Campanella, marcava em Buenos Aires o gol da vitória sobre o Boca Juniors.
Campanella e seu ator, o estupendo Guillermo Francella, são torcedores fanáticos do Racing, e a sequência de "O Segredo dos Seus Olhos" que "campanellizou" uma crítica até então rebelde é um pseudo plano-sequência que tem lugar no estádio do Huracán, onde jogavam Racing x Huracán, com Ricardo Darín (o notável ator protagonista do filme) e Francella perdidos em meio a 40 mil "agentes digitais", filhos de um software de última geração.
Vem daí o fato de a notícia do Oscar, desde a segunda-feira, estar enfeitando o site na internet da equipe de Avellaneda. Antes mesmo de viajar, o mesmo Francella havia anunciado o tipo de experiência que os aguardava em Los Angeles.
"É como uma Copa do Mundo do Cinema", declarou.
Alguns compatriotas parecem tê-lo tomado ao pé da letra quando, na noite de domingo, se propuseram a ir festejar no Obelisco, a tradicional sede portenha da euforia futebolística. Segundos depois de anunciar que tinha sido encontrado morto o alpinista perdido em uma montanha da Província de San Juan, o jornal mais sério da TV argentina passou a tratar do tema do Oscar e arrematou a escalada esportiva com a seguinte constatação: "Argentinos no topo do mundo".
Na terça pela manhã já tínhamos passado para a superstição e a profecia, outros dois clássicos da alucinação esportiva: o jornal mais vendido do país recordava que o outro Oscar conquistado por um filme argentino ("A História Oficial", de Luis Puenzo, em 1986) precedeu a conquista argentina da Copa do Mundo de futebol naquele ano.
Não pequemos por excesso de racionalismo. Quem sabe "O Segredo dos Seus Olhos" faça mais pela seleção argentina na África do Sul 2010 do que os pés dos rapazes de Maradona. E quem sabe a sorte do cinema argentino esteja mais nos pés dos rapazes de Maradona do que no olhar de seus cineastas.


Tradução de CLARA ALLAIN

ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O Passado", entre outros


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