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ANÁLISE
Qualquer um pode ganhar ou perder
ALAN PAULS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Vinte e quatro horas antes do
Oscar, um punhado de cinéfilos
recalcitrantes (os poucos que
não tinham se rendido aos encantos de "O Segredo dos Seus
Olhos", cuja façanha máxima
não foi atrair 2,5 milhões de espectadores, mas seduzir a crítica, que há dez anos denegria o
diretor) proclamava que Juan
José Campanella não poderia
derrotar Michael Haneke.
Imunes a qualquer forma de
nacionalismo -afinal, a única
pátria que reconhecem é o cinema-, os cinéfilos, como
acontece com os escritores antes de cada entrega do Nobel de
Literatura, pecavam pela ingenuidade e se contradiziam:
continuavam a menosprezar
em silêncio a Academia de
Hollywood (que, afinal, é o
"aparato institucional de uma
indústria hegemônica" etc.),
mas ao mesmo tempo a confundiam com o tribunal que colocaria as coisas em seus devidos lugares -uma espécie de
Suprema Corte de Justiça que
não hesitaria em decidir em favor dos "verdadeiros" valores
cinematográficos.
Ganhou "O Segredo dos Seus
Olhos". Pode ser que o veredicto da Academia queira dizer algo, mas sem dúvida não tem nada a ver com uma questão de
valores cinematográficos. Tem
a ver com a competência, com
um modelo esportivo de seleção e consagração que é quase
tão hegemônico na cultura
contemporânea quanto a indústria de Hollywood quando
se trata de promover modelos
cinematográficos.
Um filme não costuma ganhar porque é melhor -ele é
melhor porque ganha. Os méritos não são a condição da vitória, mas sua consequência retroativa. Ademais, quando as
únicas alternativas são ganhar
ou perder, qualquer um pode
ganhar ou perder.
A equipe de "O Segredo dos
Seus Olhos" compreendeu perfeitamente a lógica da conjuntura. Não foi por nada que a primeira comunicação pública
que seus integrantes estabeleceram com a Argentina na segunda-feira, já com os 3,85 quilos de estanho folheados a ouro
em seu poder, não foi com autoridades do cinema, nem com
críticos ou jornalistas, mas com
Gabriel Hauche, o atacante do
Racing Club de Avellaneda que,
no domingo, enquanto na Califórnia o teleprompter apressava Campanella, marcava em
Buenos Aires o gol da vitória
sobre o Boca Juniors.
Campanella e seu ator, o estupendo Guillermo Francella,
são torcedores fanáticos do Racing, e a sequência de "O Segredo dos Seus Olhos" que "campanellizou" uma crítica até então rebelde é um pseudo plano-sequência que tem lugar no estádio do Huracán, onde jogavam Racing x Huracán, com Ricardo Darín (o notável ator
protagonista do filme) e Francella perdidos em meio a 40 mil
"agentes digitais", filhos de um
software de última geração.
Vem daí o fato de a notícia do
Oscar, desde a segunda-feira,
estar enfeitando o site na internet da equipe de Avellaneda.
Antes mesmo de viajar, o
mesmo Francella havia anunciado o tipo de experiência que
os aguardava em Los Angeles.
"É como uma Copa do Mundo
do Cinema", declarou.
Alguns compatriotas parecem tê-lo tomado ao pé da letra
quando, na noite de domingo,
se propuseram a ir festejar no
Obelisco, a tradicional sede
portenha da euforia futebolística. Segundos depois de anunciar que tinha sido encontrado
morto o alpinista perdido em
uma montanha da Província de
San Juan, o jornal mais sério da
TV argentina passou a tratar do
tema do Oscar e arrematou a
escalada esportiva com a seguinte constatação: "Argentinos no topo do mundo".
Na terça pela manhã já tínhamos passado para a superstição
e a profecia, outros dois clássicos da alucinação esportiva: o
jornal mais vendido do país recordava que o outro Oscar conquistado por um filme argentino ("A História Oficial", de Luis
Puenzo, em 1986) precedeu a
conquista argentina da Copa do
Mundo de futebol naquele ano.
Não pequemos por excesso
de racionalismo. Quem sabe "O
Segredo dos Seus Olhos" faça
mais pela seleção argentina na
África do Sul 2010 do que os pés
dos rapazes de Maradona. E
quem sabe a sorte do cinema
argentino esteja mais nos pés
dos rapazes de Maradona do
que no olhar de seus cineastas.
Tradução de CLARA ALLAIN
ALAN PAULS é escritor argentino, autor de "O
Passado", entre outros
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