São Paulo, sexta, 13 de março de 1998

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Continuação

Temendo o que os "Magos" poderiam fazer com o meu pobre computador (enviar um vírus, por exemplo) se descobrissem a minha verdadeira identidade, achei por bem amarrar meu burrinho em outras bandas. "Avalon" me pareceu uma terra simpática. Lembrei da capa do disco do Roxy Music. Escolhi meu pseudônimo. Algo medieval. Galahad é a minha cara.
Excepcionalmente, consigo passar ileso pelo download. Ufa! Estou em Avalon. Um texto de letras miudinhas sobre a tela azul do computador me explica onde estou e o que estou vendo (na verdade, não vejo nada além do texto): "É um dia primaveril e o parque está coberto com um tapete de folhas e o lago reflete a luz do sol...". OK. Tento visualizar a cena. Mal cheguei e alguém já quer falar comigo. É o Bom Samaritano: "Bem-vindo, Galahad. Estou aqui para ajudá-lo no que precisar. Só quero o seu bem".
Demoro uns instantes para entender o que quer o pervertido, o tempo do Bom Samaritano voltar à carga: "Galahad? Você está aí? Fale comigo, Galahad! Estou aqui para ajudá-lo!". Nisso, ainda atônito e antes de poder responder às súplicas do colega, vejo surgir na tela a seguinte frase: "Nivea se prepara para ingerir o SATA". Era o que faltava. Agora, totalmente perplexo, não sei mais o que dizer, não sei nem mesmo onde estou e quem eu sou. Me lembro da "identidade múltipla". O Bom Samaritano insiste: "Galahad! Nivea vai ingerir o SATA!" E eu com isso? Sem ação, saio correndo de Avalon.


"Se a Internet é o futuro, então o futuro é das crianças, ou "adult babies'"

Ao voltar a mim, penso em progressão conclusiva: 1. Se aquele era um jogo para adultos; 2. E se os adultos naquele jogo estavam brincando de Bom Samaritano e Nivea ingerindo o SATA (seja lá o que isso queira dizer); 3. Então, aqueles deviam ser autênticos "adult babies".
A Internet está infestada deles. Na verdade, foi criada para eles. Porque ela é o mundo da fantasia coletiva. Você pode matar, morrer, estuprar, mudar de sexo, classe, identidade e ainda sair incólume, sem correr riscos, sempre protegido atrás da tela do computador. Um celeiro de fantasias que se alimentam mutuamente.
Só o sexo poderia explicar o sucesso da Internet entre aqueles que se viciam, aqueles que a tomam não como mero meio ou instrumento de informação e pesquisa (um desdobramento do telefone, ainda à espera de ser melhor desenvolvido), mas como fim, como modo de vida. Um modo de vida com traços predominantemente americanos.
Só a possibilidade de uma fantasia resguardada e sem o perigo e os contratempos ou limites do real pode levar uma pessoa a suportar as horas perdidas em downloads, linhas caídas e "erros no aplicativo". E não é à toa que os americanos, os principais beneficiários do comércio mundial da rede, não podem censurar o sexo na Internet. Não porque não queiram, mas porque ele é o principal motor dessa nova forma de imperialismo.
Se a Internet é o futuro, então o futuro é das crianças, ou melhor, dos "adult babies". No fundo, viver na Internet é como brincar de casinha, de médico ou de au-au. Seja num MUD, MUSH ou MOO, seja se consultando com um terapeuta online, seja fazendo sexo virtual. A Internet é a possibilidade de uma regressão compartilhada. Tudo é fantasia inconsequente. Como as crianças brincam de adultos, aqui os adultos brincam de crianças. E se soltam na pracinha.
Viver na Internet é uma regressão sem fim. E depois de uma semana confinado na rede, até sua função de arquivo e instrumento de pesquisa (uma função, em princípio, adulta) perde o sentido. Diante dos milhares de sites à disposição, nada mais interessa, porque nada é diferenciado, não há mais qualquer critério qualitativo. O parâmetro é a quantidade. Tudo está colocado no mesmo nível. Tudo tem o mesmo peso e o mesmo valor. O bizarro deixa de ser bizarro, o inteligente deixa de ser inteligente, o cômico deixa de ser cômico, por causa do excesso. E se você não está ali com um objetivo específico e passa a tomar o que devia ser meio como fim, então tudo se transforma em pura masturbação.
Daí eu ter saído da terra encantada de Avalon direto para o "Guia Mórmon de Autocontrole contra a Masturbação" online. Uma pérola com que decidi fechar minha semana iniciada com os amantes das fraldas. O guia aconselha o onanista internauta, quando acometido por imagens do demônio do desejo, a gritar contra os seus próprios pensamentos, mesmo alto, mesmo no meio da rua, ou numa reunião, se necessário for; a diminuir o tempero na comida; a nunca se olhar no espelho enquanto toma banho; e a não ficar mais do que cinco ou seis minutos no banheiro, "o tempo de se lavar, se enxugar, se vestir e sair correndo até um outro cômodo da casa onde um outro membro da família já se encontre esperando". Além de exercícios e muita reza.
Li o guia dos mórmons com um prazer demoníaco. Mas continuo achando a minha receita contra o vício da Internet mais direta (e provavelmente mais eficaz): basta passar uma semana trancado dentro de casa na frente do computador, "navegando". Ponho minha mão no fogo como você não vai querer voltar nunca mais -ou, como disse um amigo espirituoso num dos e-mails que me mandou ao longo da fatídica semana, "não vai ter pulso para tanto".



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