São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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DISCO/LANÇAMENTO
CD "Get Happy!" da cantora, gravação de 1959, é relançado
As infinitas paixões da música d'Ella Fitzgerald (e vice-versa)

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Get Happy!" -nem sempre étão fácil. A alegria é uma forma de sabedoria: toda alegria é sábia, mas nem toda sabedoria é alegre, e se uma já é difícil, imagine-se a outra. Alegria e sabedoria se cruzam, imprevistamente, na voz dessa mulher, capaz de fazer qualquer um feliz, ou pelo menos mais feliz, se não mais sábio.
Seu nome não podia ser mais apropriado: Ella. Uma voz como essa, com todas as suas metamorfoses para cima e para baixo de quase três oitavas, escapa a qualquer definição. Toda palavra, afinal, é uma generalização, a média do significado. Mas uma voz -qualquer voz, e essa de modo mais marcante do que as outras- é o que existe de mais específico no mundo: seu sentido não pode ser traduzido, embora seja muito bem compreendido. É a voz dela. Não tem descrição, mas tem nome: Ella.
Não é um acidente, então, que Ella Fitzgerald (1917-96) seja nossa maior intérprete de canções de amor. O que há de repetitivo nessas músicas, nessas letras, torna-se específico como nunca, pela força da voz e a inteligência da paixão. Talvez não haja outro modo mais imediato de alimentar a presença do afeto fora do próprio afeto se não nessas palavras tão simples e nessas melodias tão simplesmente engenhosas, que a voz dela faz flutuar no ar. Só ar no ar, afinal: que mistério é a música.
"Somebody loves me / I wonder who..." (alguém me ama, eu me pergunto quem). Não soa como uma entrada certa na felicidade; mas os tons da voz e os tons de Gershwin deixam adivinhar o que está por vir. Para bom entendedor, meio compasso basta. "You Make Me Feel So Young": sentir tão jovem que uma nota aguda pode saltar escala abaixo com a beleza vibrante e tranquila de uma ginasta olímpica. E isso não é tudo: "You make me feel there are songs to be sung", canções para ser cantadas, com aquela entrega cega às circunstâncias, que é uma forma de clarividência.
Mas nem tudo neste CD, uma reedição da gravação clássica de 1959, ressoa com o mesmo contentamento, e isso mesmo levando em conta as cintilações das várias orquestras que acompanham Ella. "You Turned the Tables on Me" (você virou a mesa comigo) não caberia, à primeira vista, num disco tão seguro de suas exaltações. Mas assim como os terrores do amor não estão nunca completamente ausentes de uma alma que já se apaixonou antes, também as sombras de um passado vivido e de um futuro imprevisível cercam as canções, mesmo ali onde menos se espera. As inúmeras façanhas de "scat-singing", que Ella exibe como se tivesse virado um trompete humano, ou sobre-humano, não deixam de fazer escutar um lamento entre as notas que, por sua vez, deixa escutar o quanto não foi vivido e vencido para se chegar até aqui. O si bemol incrível, uma sirene vinda do outro lado de tudo, no final de "St. Louis Blues" tem o tom da coragem de aço dessa mulher que foi capaz de ser Ella.
"Blue Skies", céu azul e nada senão céu azul: oxalá, oxalá, mas nem Irving Berlin pode garantir tanta bonança. Cantada por Ella, no entanto, uma canção como essa vira um amuleto, um objeto mágico gravado na memória, capaz de infundir forças até no momento mais duro. "Cool Breeze" é de outra natureza: voz pura, sem palavras do início ao fim, para o que não tem palavras, nem início, nem fim.
"Get happy!" -talvez não seja tão difícil, afinal. "Somebody loves me /I wonder who". A orquestra confia na nota surda do contrabaixo. E a voz de Ella vai desfiando melismas, que lembram quase o prazer ideal do oriente. "Maybe", talvez -e os metais pontuam a linha com um acorde de neon- "it's a possibility", é uma possibilidade, "maybe" -outro acorde de prata- "it's not unbelievable", não é impossível de acreditar, "maybe... could be, perhaps..." talvez, pode ser, quem sabe -e a música faz alegria e sabedoria se confirmarem na última sílaba, indescritível nessa voz, que é a voz de cada um de nós, quando ouvimos Ella, ou ela: "It's you".

Disco: Get Happy!
Artista: Ella Fitzgerald
Lançamento: Verve



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