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DISCO/LANÇAMENTO
CD "Get Happy!" da cantora, gravação de 1959, é relançado
As infinitas paixões da música d'Ella Fitzgerald (e vice-versa)
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
"Get Happy!" -nem sempre
étão fácil. A alegria é uma forma
de sabedoria: toda alegria é sábia, mas nem toda sabedoria é
alegre, e se uma já é difícil, imagine-se a outra. Alegria e sabedoria se cruzam, imprevistamente, na voz dessa mulher, capaz de fazer qualquer um feliz,
ou pelo menos mais feliz, se não
mais sábio.
Seu nome não podia ser mais
apropriado: Ella. Uma voz como
essa, com todas as suas metamorfoses para cima e para baixo
de quase três oitavas, escapa a
qualquer definição. Toda palavra, afinal, é uma generalização,
a média do significado. Mas uma
voz -qualquer voz, e essa de
modo mais marcante do que as
outras- é o que existe de mais
específico no mundo: seu sentido não pode ser traduzido, embora seja muito bem compreendido. É a voz dela. Não tem descrição, mas tem nome: Ella.
Não é um acidente, então, que
Ella Fitzgerald (1917-96) seja
nossa maior intérprete de canções de amor. O que há de repetitivo nessas músicas, nessas letras, torna-se específico como
nunca, pela força da voz e a inteligência da paixão. Talvez não
haja outro modo mais imediato
de alimentar a presença do afeto
fora do próprio afeto se não nessas palavras tão simples e nessas
melodias tão simplesmente engenhosas, que a voz dela faz flutuar no ar. Só ar no ar, afinal: que
mistério é a música.
"Somebody loves me / I wonder who..." (alguém me ama, eu
me pergunto quem). Não soa como uma entrada certa na felicidade; mas os tons da voz e os
tons de Gershwin deixam adivinhar o que está por vir. Para
bom entendedor, meio compasso basta. "You Make Me Feel So
Young": sentir tão jovem que
uma nota aguda pode saltar escala abaixo com a beleza vibrante e tranquila de uma ginasta
olímpica. E isso não é tudo: "You
make me feel there are songs to
be sung", canções para ser cantadas, com aquela entrega cega
às circunstâncias, que é uma forma de clarividência.
Mas nem tudo neste CD, uma
reedição da gravação clássica de
1959, ressoa com o mesmo contentamento, e isso mesmo levando em conta as cintilações das
várias orquestras que acompanham Ella. "You Turned the Tables on Me" (você virou a mesa
comigo) não caberia, à primeira
vista, num disco tão seguro de
suas exaltações. Mas assim como os terrores do amor não estão nunca completamente ausentes de uma alma que já se
apaixonou antes, também as
sombras de um passado vivido e
de um futuro imprevisível cercam as canções, mesmo ali onde
menos se espera. As inúmeras
façanhas de "scat-singing", que
Ella exibe como se tivesse virado
um trompete humano, ou sobre-humano, não deixam de fazer
escutar um lamento entre as notas que, por sua vez, deixa escutar o quanto não foi vivido e vencido para se chegar até aqui. O si
bemol incrível, uma sirene vinda
do outro lado de tudo, no final
de "St. Louis Blues" tem o tom
da coragem de aço dessa mulher
que foi capaz de ser Ella.
"Blue Skies", céu azul e nada
senão céu azul: oxalá, oxalá, mas
nem Irving Berlin pode garantir
tanta bonança. Cantada por Ella,
no entanto, uma canção como
essa vira um amuleto, um objeto
mágico gravado na memória,
capaz de infundir forças até no
momento mais duro. "Cool
Breeze" é de outra natureza: voz
pura, sem palavras do início ao
fim, para o que não tem palavras, nem início, nem fim.
"Get happy!" -talvez não seja
tão difícil, afinal. "Somebody loves me /I wonder who". A orquestra confia na nota surda do
contrabaixo. E a voz de Ella vai
desfiando melismas, que lembram quase o prazer ideal do
oriente. "Maybe", talvez -e os
metais pontuam a linha com um
acorde de neon- "it's a possibility", é uma possibilidade, "maybe" -outro acorde de prata-
"it's not unbelievable", não é impossível de acreditar, "maybe...
could be, perhaps..." talvez, pode ser, quem sabe -e a música
faz alegria e sabedoria se confirmarem na última sílaba, indescritível nessa voz, que é a voz de
cada um de nós, quando ouvimos Ella, ou ela: "It's you".
Disco: Get Happy!
Artista: Ella Fitzgerald
Lançamento: Verve
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