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WALTER SALLES
Cinema argentino e rock'n'roll
Nada melhor para entender a pulsação de uma cidade do que ouvir o motorista de táxi local. Breve exemplo: um amigo chegou a Paris e pegou um táxi
no aeroporto. Uma hora e meia
depois, continuava preso em um
engarrafamento. O motorista,
mudo. O amigo arriscou uma
pergunta: "Como anda o tempo
em Paris?". O taxista deu um
tempinho, virou-se levemente para trás e arremessou: "Não sou do
serviço meteorológico". Pronto.
Tudo claro. Você ouve isso e já sabe onde está.
O taxista que me conduz através das ruas de Buenos Aires é
simpático e articulado. Muita coisa mudou desde a última vez que
estive aqui, pouco antes da crise.
As paredes da cidade estão coalhadas de grafites com dizeres
"sin policia" e "sin autoridad".
Deviam explicitar "sin politicos",
sugere o taxista. E arremata:
"Cansei do que esses caras me dizem, de que é necessário apertar o
cinto, fazer mais sacrifícios". Como diz uma amiga argentina:
"Basta de realidade. Queremos
promessas".
Alimentando-se da realidade, o
jovem cinema argentino deixou
de ser uma promessa para virar
uma das cinematografias mais
interessantes da atualidade. Há
poucos dias, um crítico do jornal
"Le Monde" sentenciou: "Os cineastas argentinos dessa nova geração estão fazendo cinema como
os ingleses faziam rock'n'roll nos
anos 60".
"Bem, a produção é certamente
rock'n'roll." É o que me diz Pablo
Reyero, documentarista que está
acabando o seu primeiro longa,
"La Cruz del Sur". Finalista do último concurso de roteiros do Instituto Sundance, Reyero optou
por realizar o seu filme com não-atores, que ensaiou à exaustão
para poder avançar mais rápido.
Filmou com uma equipe pequena, em super 16, por uma fração
do custo de um filme do Dogma
95.
Não está sozinho: igualmente
filmado em 16mm e com não-atores, "Mundo Grua", longa de estréia de Pablo Trapero, foi para
muitos a grande revelação cinematográfica do ano passado. Cineasta de um rigor bressoniano,
Trapero acaba de realizar seu segundo longa, "El Bonaerense".
Trabalhou de novo com poucos
recursos. Filmou em poucas semanas, misturando dessa vez
atores profissionais e não-atores.
"El Bonaerense" segue a trajetória de um jovem de periferia que
parte para a cidade grande em
busca de trabalho. Acaba se tornando policial. A perda da inocência ganha um caráter de urgência. Trapero integrou as recentes manifestações populares e
os protestos de rua ao filme. O
processo acelerado de transformação do país vira o pano de fundo da história.
Há quem veja em "La Ciénaga", o longa de estréia de Lucrecia
Martel premiado em Berlim, a
antecipação daquilo que viria a
acontecer na Argentina. A bebedeira e o torpor da burguesia nacional como parte do caos. Pode-se aceitar ou não essa tese, mas
uma coisa parece certa: na Argentina de hoje, o cinema e o grito
das ruas estão intimamente ligados. E não somente pelo que se vê
na tela.
A crise vem afetando diretamente a realização dos filmes. O
longa de Trapero, por exemplo,
teve que parar quando os recursos
do filme ficaram bloqueados por
um dos pacotes econômicos. Sem
perspectiva de trabalho, o diretor
de fotografia preferiu emigrar para a Espanha. Quando "El Bonaerense" retomou, a solução foi pedir ao câmera que assumisse o
cargo vago. Como o filme é dividido em partes bem distintas e a
primeira etapa tinha acabado, ele
não foi afetado, diz-me Trapero.
A mixagem também não. Graças a um prêmio ganho na França, o Fond Sud, o filme de Trapero
poderá seguir normalmente até o
final. "As co-produções são a saída para o cinema argentino neste
momento", explica Daniel Burman. Ganhador do concurso de
roteiros do Sundance com "Todas
as Aeromoças Vão para o Céu",
Burman conseguiu terminar o
seu terceiro longa graças a uma
co-produção com a Espanha.
Fundos, como o Ibermedia, que
ajudam jovens realizadores como
Burman até jovens de 90 anos como Manoel de Oliveira, vêm tornando essa resistência possível.
Cinco milhões de pessoas iam
regularmente ao cinema na Argentina antes da crise, diz Burman. Agora, apenas 1,5 milhão.
Com a alta do dólar, são necessários 2.000 ingressos só para pagar
uma cópia. Conclusão: dos 40 filmes argentinos produzidos no
ano passado, muitos não puderam ser lançados.
Como no Brasil e ao contrário
do que ocorre na Europa, as televisões não são obrigadas a participar do financiamento dos filmes
argentinos, o que torna a equação
ainda mais complicada. Só sobra
mesmo a criatividade, diz Pablo
Reyero.
Trapero, Caetano, Reyero e outros jovens realizadores argentinos estão lutando, neste momento, para finalizarem os seus longas. Se ficarem prontos a tempo,
poderemos assistir a uma presença importante do novo cinema
argentino no próximo Festival de
Cannes. Filmes secos, viscerais,
enxutos e bem escritos: além de
estarem efetivamente fazendo cinema com a urgência do rock dos
anos 60, os jovens cineastas argentinos estão provando que o
nosso vizinho não é só bom de futebol. Mais do que merecido.
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