São Paulo, sábado, 13 de abril de 2002

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WALTER SALLES

Cinema argentino e rock'n'roll

Nada melhor para entender a pulsação de uma cidade do que ouvir o motorista de táxi local. Breve exemplo: um amigo chegou a Paris e pegou um táxi no aeroporto. Uma hora e meia depois, continuava preso em um engarrafamento. O motorista, mudo. O amigo arriscou uma pergunta: "Como anda o tempo em Paris?". O taxista deu um tempinho, virou-se levemente para trás e arremessou: "Não sou do serviço meteorológico". Pronto. Tudo claro. Você ouve isso e já sabe onde está.
O taxista que me conduz através das ruas de Buenos Aires é simpático e articulado. Muita coisa mudou desde a última vez que estive aqui, pouco antes da crise. As paredes da cidade estão coalhadas de grafites com dizeres "sin policia" e "sin autoridad". Deviam explicitar "sin politicos", sugere o taxista. E arremata: "Cansei do que esses caras me dizem, de que é necessário apertar o cinto, fazer mais sacrifícios". Como diz uma amiga argentina: "Basta de realidade. Queremos promessas".
Alimentando-se da realidade, o jovem cinema argentino deixou de ser uma promessa para virar uma das cinematografias mais interessantes da atualidade. Há poucos dias, um crítico do jornal "Le Monde" sentenciou: "Os cineastas argentinos dessa nova geração estão fazendo cinema como os ingleses faziam rock'n'roll nos anos 60".
"Bem, a produção é certamente rock'n'roll." É o que me diz Pablo Reyero, documentarista que está acabando o seu primeiro longa, "La Cruz del Sur". Finalista do último concurso de roteiros do Instituto Sundance, Reyero optou por realizar o seu filme com não-atores, que ensaiou à exaustão para poder avançar mais rápido. Filmou com uma equipe pequena, em super 16, por uma fração do custo de um filme do Dogma 95.
Não está sozinho: igualmente filmado em 16mm e com não-atores, "Mundo Grua", longa de estréia de Pablo Trapero, foi para muitos a grande revelação cinematográfica do ano passado. Cineasta de um rigor bressoniano, Trapero acaba de realizar seu segundo longa, "El Bonaerense". Trabalhou de novo com poucos recursos. Filmou em poucas semanas, misturando dessa vez atores profissionais e não-atores.
"El Bonaerense" segue a trajetória de um jovem de periferia que parte para a cidade grande em busca de trabalho. Acaba se tornando policial. A perda da inocência ganha um caráter de urgência. Trapero integrou as recentes manifestações populares e os protestos de rua ao filme. O processo acelerado de transformação do país vira o pano de fundo da história.
Há quem veja em "La Ciénaga", o longa de estréia de Lucrecia Martel premiado em Berlim, a antecipação daquilo que viria a acontecer na Argentina. A bebedeira e o torpor da burguesia nacional como parte do caos. Pode-se aceitar ou não essa tese, mas uma coisa parece certa: na Argentina de hoje, o cinema e o grito das ruas estão intimamente ligados. E não somente pelo que se vê na tela.
A crise vem afetando diretamente a realização dos filmes. O longa de Trapero, por exemplo, teve que parar quando os recursos do filme ficaram bloqueados por um dos pacotes econômicos. Sem perspectiva de trabalho, o diretor de fotografia preferiu emigrar para a Espanha. Quando "El Bonaerense" retomou, a solução foi pedir ao câmera que assumisse o cargo vago. Como o filme é dividido em partes bem distintas e a primeira etapa tinha acabado, ele não foi afetado, diz-me Trapero.
A mixagem também não. Graças a um prêmio ganho na França, o Fond Sud, o filme de Trapero poderá seguir normalmente até o final. "As co-produções são a saída para o cinema argentino neste momento", explica Daniel Burman. Ganhador do concurso de roteiros do Sundance com "Todas as Aeromoças Vão para o Céu", Burman conseguiu terminar o seu terceiro longa graças a uma co-produção com a Espanha. Fundos, como o Ibermedia, que ajudam jovens realizadores como Burman até jovens de 90 anos como Manoel de Oliveira, vêm tornando essa resistência possível.
Cinco milhões de pessoas iam regularmente ao cinema na Argentina antes da crise, diz Burman. Agora, apenas 1,5 milhão. Com a alta do dólar, são necessários 2.000 ingressos só para pagar uma cópia. Conclusão: dos 40 filmes argentinos produzidos no ano passado, muitos não puderam ser lançados.
Como no Brasil e ao contrário do que ocorre na Europa, as televisões não são obrigadas a participar do financiamento dos filmes argentinos, o que torna a equação ainda mais complicada. Só sobra mesmo a criatividade, diz Pablo Reyero.
Trapero, Caetano, Reyero e outros jovens realizadores argentinos estão lutando, neste momento, para finalizarem os seus longas. Se ficarem prontos a tempo, poderemos assistir a uma presença importante do novo cinema argentino no próximo Festival de Cannes. Filmes secos, viscerais, enxutos e bem escritos: além de estarem efetivamente fazendo cinema com a urgência do rock dos anos 60, os jovens cineastas argentinos estão provando que o nosso vizinho não é só bom de futebol. Mais do que merecido.



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