São Paulo, terça-feira, 13 de abril de 2004

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BERNARDO CARVALHO

Lobo! Lobo!

Entre os livros de que não me lembrava, num pacote que enviei por correio, de Paris, no ano passado, e que já não esperava receber, havia uma edição dos arquivos de Thomas Bern- hard (1931-1989), o catálogo de uma exposição com uma série de fotografias do escritor austríaco e das duas figuras mais importantes da sua vida: o avô, que o acolheu e incentivou durante a infância difícil, e uma mulher, 37 anos mais velha, que ele encontrou quando tinha 19 anos e que o acompanhou e o apoiou pelo resto da vida. O pacote reapareceu na porta da minha casa na semana passada.
Na contracapa do catálogo, há uma declaração do escritor: "Creio que cada um de nós encontra seres que têm um papel determinante. Tive dois na minha vida. Meu avô materno e em seguida um ser que conheci um ano antes da morte da minha mãe. Foi uma relação que durou mais de 35 anos".
Na sua obra, Bernhard se refere a esse "ser" como "a tia". Hedwig Stavianicek (1894-1984) aparece pela primeira vez em "O Sobrinho de Wittgenstein" (1982). Os dois se encontraram em 1950, na igreja de St. Veit, na região de Salzburgo, onde ficava o sanatório em que o jovem tuberculoso e futuro escritor estava internado. Nunca mais se separaram.
O lamento pela morte da "tia" ecoa também em "Mestres Antigos" (1985): "Quando você perde o ser que lhe era mais próximo, tudo parece vazio (...) e você reconhece que não foram os grandes espíritos e os mestres antigos que o mantiveram vivo por décadas, mas apenas aquele único ser que você amou mais do que qualquer outro".
Boa parte da obra de Bernhard (e não apenas os livros autobiográficos) incita a curiosidade do leitor em relação à vida do autor. E isso a ponto de uma das suas maiores admiradoras ter se dado ao trabalho de escrever um livro inteiro (misto de ensaio e investigação, com entrevistas e fotos) em busca das pessoas reais por trás dos personagens: "Thomas Bern- hard e os Seus", de Gemma Salem (ed. La Table Ronde, Paris).
O escritor, porém, mantinha uma relação ambígua com essa curiosidade, para dizer o mínimo. Sempre foi um homem recluso e arredio. Num texto de 1978, Bern-hard escreveu: "Quanto mais nos aproximávamos do nosso escritor depois do primeiro encontro, mais nos distanciávamos dele - e com a mesma intensidade- e quanto mais conhecíamos a sua personalidade, mais nos distanciávamos dos seus livros; cada palavra que ele nos dizia, cada pensamento que emitia diante de nós nos distanciava daquela mesma palavra e daquele mesmo pensamento em sua obra".
A citação é providencial num tempo em que a imaginação na literatura parece gozar de um desprestígio crescente entre os leitores, mesmo entre os mais cultos. Não é preciso muito esforço para notar que não só os livros jornalísticos e as biografias mas também os romances "baseados em histórias reais" interessam mais os leitores do que as "obras de imaginação". O que prende o leitor a um livro em que há ambigüidade entre realidade e ficção é a realidade, e não a ficção. A ficção, para ele, é a parte supérflua.
Numa recente oficina na periferia, fiquei espantado com o desinteresse dos adolescentes por inventar histórias, por escrever ou contar histórias criadas nas suas cabeças, por usar a imaginação mas também por ler ou ouvir histórias inventadas, em oposição ao interesse de relatar e ouvir o relato de experiências reais.
É uma tendência humanamente compreensível (de outra forma, se venderiam tantos romances quanto revistas de fofocas e de bastidores), que não se restringe à periferia degradada e coagida pela urgência de uma realidade implacável, assombrada pela violência mais imediata e pela falta de perspectiva, mas atinge também a parte em princípio mais letrada da população -e não só brasileira. O assustador é que possa ser resultado e sinal de uma percepção cada vez mais empobrecida do imaginário. Como se toda "obra de imaginação" não estivesse de alguma forma ancorada na realidade e não a refletisse. Como se a imaginação não fosse um elemento constitutivo e fundador da realidade, mas um artigo supérfluo.
Há alguns anos, num encontro entre escritores de países periféricos, nos Estados Unidos, citei uma aula de Nabokov: "A literatura não nasceu no dia em que um menino gritando lobo!, lobo! veio correndo do vale de Neandertal com um grande lobo cinzento no seu encalço: a literatura nasceu no dia em que um menino veio gritando lobo!, lobo! e não havia lobo nenhum atrás dele. (...) Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de história verídica é um insulto tanto à arte quanto à verdade".
Um escritor até então muito simpático, representante de Mianmar, país marcado pelo budismo, ficou irritadíssimo com a citação, que deve ter lhe parecido retórica de ocidentais que não são obrigados a viver sob o jugo de uma ditadura truculenta, e se saiu com a seguinte resposta: "E a Bíblia de vocês? Não é tudo verdade?". Fiquei sem palavras. Até hoje não sei se o subestimei, se fui eu que não percebi que ele estava sendo irônico e que, no fundo, com aquele comentário aparentemente lançado como provocação e desafio, estava, ele também, fazendo o elogio da ficção.


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