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BERNARDO CARVALHO
Lobo! Lobo!
Entre os livros de que não
me lembrava, num pacote
que enviei por correio, de Paris,
no ano passado, e que já não esperava receber, havia uma edição
dos arquivos de Thomas Bern-
hard (1931-1989), o catálogo de
uma exposição com uma série de
fotografias do escritor austríaco e
das duas figuras mais importantes da sua vida: o avô, que o acolheu e incentivou durante a infância difícil, e uma mulher, 37
anos mais velha, que ele encontrou quando tinha 19 anos e que o
acompanhou e o apoiou pelo resto da vida. O pacote reapareceu
na porta da minha casa na semana passada.
Na contracapa do catálogo, há
uma declaração do escritor:
"Creio que cada um de nós encontra seres que têm um papel determinante. Tive dois na minha
vida. Meu avô materno e em seguida um ser que conheci um ano
antes da morte da minha mãe.
Foi uma relação que durou mais
de 35 anos".
Na sua obra, Bernhard se refere
a esse "ser" como "a tia". Hedwig
Stavianicek (1894-1984) aparece
pela primeira vez em "O Sobrinho
de Wittgenstein" (1982). Os dois
se encontraram em 1950, na igreja de St. Veit, na região de Salzburgo, onde ficava o sanatório em
que o jovem tuberculoso e futuro
escritor estava internado. Nunca
mais se separaram.
O lamento pela morte da "tia"
ecoa também em "Mestres Antigos" (1985): "Quando você perde
o ser que lhe era mais próximo,
tudo parece vazio (...) e você reconhece que não foram os grandes
espíritos e os mestres antigos que
o mantiveram vivo por décadas,
mas apenas aquele único ser que
você amou mais do que qualquer
outro".
Boa parte da obra de Bernhard
(e não apenas os livros autobiográficos) incita a curiosidade do
leitor em relação à vida do autor.
E isso a ponto de uma das suas
maiores admiradoras ter se dado
ao trabalho de escrever um livro
inteiro (misto de ensaio e investigação, com entrevistas e fotos) em
busca das pessoas reais por trás
dos personagens: "Thomas Bern-
hard e os Seus", de Gemma Salem
(ed. La Table Ronde, Paris).
O escritor, porém, mantinha
uma relação ambígua com essa
curiosidade, para dizer o mínimo.
Sempre foi um homem recluso e
arredio. Num texto de 1978, Bern-hard escreveu: "Quanto mais nos
aproximávamos do nosso escritor
depois do primeiro encontro,
mais nos distanciávamos dele -
e com a mesma intensidade- e
quanto mais conhecíamos a sua
personalidade, mais nos distanciávamos dos seus livros; cada palavra que ele nos dizia, cada pensamento que emitia diante de nós
nos distanciava daquela mesma
palavra e daquele mesmo pensamento em sua obra".
A citação é providencial num
tempo em que a imaginação na
literatura parece gozar de um
desprestígio crescente entre os leitores, mesmo entre os mais cultos.
Não é preciso muito esforço para
notar que não só os livros jornalísticos e as biografias mas também os romances "baseados em
histórias reais" interessam mais
os leitores do que as "obras de
imaginação". O que prende o leitor a um livro em que há ambigüidade entre realidade e ficção é
a realidade, e não a ficção. A ficção, para ele, é a parte supérflua.
Numa recente oficina na periferia, fiquei espantado com o desinteresse dos adolescentes por inventar histórias, por escrever ou
contar histórias criadas nas suas
cabeças, por usar a imaginação
mas também por ler ou ouvir histórias inventadas, em oposição ao
interesse de relatar e ouvir o relato de experiências reais.
É uma tendência humanamente compreensível (de outra forma,
se venderiam tantos romances
quanto revistas de fofocas e de
bastidores), que não se restringe à
periferia degradada e coagida pela urgência de uma realidade implacável, assombrada pela violência mais imediata e pela falta de
perspectiva, mas atinge também
a parte em princípio mais letrada
da população -e não só brasileira. O assustador é que possa ser
resultado e sinal de uma percepção cada vez mais empobrecida
do imaginário. Como se toda
"obra de imaginação" não estivesse de alguma forma ancorada
na realidade e não a refletisse.
Como se a imaginação não fosse
um elemento constitutivo e fundador da realidade, mas um artigo supérfluo.
Há alguns anos, num encontro
entre escritores de países periféricos, nos Estados Unidos, citei uma
aula de Nabokov: "A literatura
não nasceu no dia em que um
menino gritando lobo!, lobo! veio
correndo do vale de Neandertal
com um grande lobo cinzento no
seu encalço: a literatura nasceu
no dia em que um menino veio
gritando lobo!, lobo! e não havia
lobo nenhum atrás dele. (...) Literatura é invenção. Ficção é ficção.
Chamar uma história de história
verídica é um insulto tanto à arte
quanto à verdade".
Um escritor até então muito
simpático, representante de
Mianmar, país marcado pelo budismo, ficou irritadíssimo com a
citação, que deve ter lhe parecido
retórica de ocidentais que não são
obrigados a viver sob o jugo de
uma ditadura truculenta, e se
saiu com a seguinte resposta: "E a
Bíblia de vocês? Não é tudo verdade?". Fiquei sem palavras. Até hoje não sei se o subestimei, se fui eu
que não percebi que ele estava
sendo irônico e que, no fundo,
com aquele comentário aparentemente lançado como provocação
e desafio, estava, ele também, fazendo o elogio da ficção.
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