São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 2006

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CRÍTICA/SHOW

Milton, sem rótulos, iguala-se aos figurões do jazz

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um fã desavisado poderia se surpreender ao ver Milton Nascimento cantar um clássico do jazz, dedilhando um baixo acústico.
Foi exatamente assim que o compositor abriu seu show de anteontem pela série Credicard Vozes, no Bourbon Street, em São Paulo.
Como outros artistas que já participaram desse projeto, Milton aceitou o desafio de interpretar um repertório diferente do habitual. Ou de reler seus sucessos num formato musical diverso do que o consagrou.
Acompanhado por seu sexteto, ele foi direto ao assunto: já entrou em cena vocalizando a melodia de "Work Song" (de Nat Adderley), clássico do soul-jazz dos anos 60. E, sem largar o contrabaixo, emendou uma versão descontraída de outra pérola do gênero: "Far More Blue" (de Dave Brubeck).
Quando tudo indicava que a seleção de clássicos do jazz continuaria, Milton virou o jogo. Trocou o baixo pelo violão e, com aquela voz sublime que emociona platéias há quatro décadas, relembrou a bela "Outubro" (parceria com Fernando Brant), lançada por ele em seu disco de estréia, em 1967.
Para quem acompanha de perto a trajetória do carioca mais mineiro da MPB, esse foi o verdadeiro início do show. A relação de Milton com o jazz o segue desde cedo e transparece em boa parte de sua obra, especialmente na maneira de tratar melodias e harmonias. Mesmo sem ser um jazzista literal, Milton é um adepto do improviso como método de criação.
Não foi à toa que ele incluiu no roteiro outras canções da fase inicial de sua carreira. Como a pungente "Tarde" (parceria com Márcio Borges), recriada com pulso de samba, em arranjo bem jazzístico. Ou a solar "Canção do Sal", que ressurge em versão mais vibrante do que a original.
Também não é à toa que Milton escolhe para sua banda músicos com formação jazzística, como o tecladista Kiko Continentino, o guitarrista Wilson Lopes ou o baterista Lincoln Cheib, que já o acompanham há anos.
Esse know-how ficou bem evidente na longa versão de "Vera Cruz" (parceria com Marcio Borges), repleta de improvisos, como numa "jam session".
Outro momento conectado com o jazz veio com "Lilia", tema instrumental lançado originalmente no lendário álbum "Clube da Esquina" (1972), que Milton compôs em homenagem à sua mãe.
A nova versão ganhou um sotaque oriental, insinuado pelo expressivo solo de Widor Santiago ao sax soprano.
Para a alegria dos fãs mais ortodoxos, o cantor também não deixou de fora sucessos como "Para Lennon e McCartney" e "Nos Bailes da Vida", acompanhado pelos vocais e palmas da platéia. E relembrou a delicada "Ponta de Areia", num singelo solo de sanfona.
Mesmo quem esperava por mais standards do jazz no repertório, não deve ter saído decepcionado. Milton mostrou que sua relação com o jazz passa mais pela liberdade sonora do que pelo vocabulário desse gênero.
Não foi por outra razão que jazzistas como Wayne Shorter e Pat Metheny se renderam à originalidade de sua música. Milton pode até recusar o rótulo de jazzista, mas não deve nada aos figurões desse gênero.


Avaliação:    
Carlos Calado é jornalista e crítico musical, autor de "O Jazz como Espetáculo", entre outros livros


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