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CRÍTICA/SHOW
Milton, sem rótulos, iguala-se aos figurões do jazz
CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um fã desavisado poderia se
surpreender ao ver Milton
Nascimento cantar um clássico
do jazz, dedilhando um baixo
acústico.
Foi exatamente assim que o
compositor abriu seu show de anteontem pela série Credicard Vozes, no Bourbon Street, em São
Paulo.
Como outros artistas que já participaram desse projeto, Milton
aceitou o desafio de interpretar
um repertório diferente do habitual. Ou de reler seus sucessos
num formato musical diverso do
que o consagrou.
Acompanhado por seu sexteto,
ele foi direto ao assunto: já entrou
em cena vocalizando a melodia de
"Work Song" (de Nat Adderley),
clássico do soul-jazz dos anos 60.
E, sem largar o contrabaixo,
emendou uma versão descontraída de outra pérola do gênero: "Far
More Blue" (de Dave Brubeck).
Quando tudo indicava que a seleção de clássicos do jazz continuaria, Milton virou o jogo. Trocou o baixo pelo violão e, com
aquela voz sublime que emociona
platéias há quatro décadas, relembrou a bela "Outubro" (parceria
com Fernando Brant), lançada
por ele em seu disco de estréia, em
1967.
Para quem acompanha de perto
a trajetória do carioca mais mineiro da MPB, esse foi o verdadeiro
início do show. A relação de Milton com o jazz o segue desde cedo
e transparece em boa parte de sua
obra, especialmente na maneira
de tratar melodias e harmonias.
Mesmo sem ser um jazzista literal,
Milton é um adepto do improviso
como método de criação.
Não foi à toa que ele incluiu no
roteiro outras canções da fase inicial de sua carreira. Como a pungente "Tarde" (parceria com
Márcio Borges), recriada com
pulso de samba, em arranjo bem
jazzístico. Ou a solar "Canção do
Sal", que ressurge em versão mais
vibrante do que a original.
Também não é à toa que Milton
escolhe para sua banda músicos
com formação jazzística, como o
tecladista Kiko Continentino, o
guitarrista Wilson Lopes ou o baterista Lincoln Cheib, que já o
acompanham há anos.
Esse know-how ficou bem evidente na longa versão de "Vera
Cruz" (parceria com Marcio Borges), repleta de improvisos, como
numa "jam session".
Outro momento conectado
com o jazz veio com "Lilia", tema
instrumental lançado originalmente no lendário álbum "Clube
da Esquina" (1972), que Milton
compôs em homenagem à sua
mãe.
A nova versão ganhou um sotaque oriental, insinuado pelo expressivo solo de Widor Santiago
ao sax soprano.
Para a alegria dos fãs mais ortodoxos, o cantor também não deixou de fora sucessos como "Para
Lennon e McCartney" e "Nos Bailes da Vida", acompanhado pelos
vocais e palmas da platéia. E relembrou a delicada "Ponta de
Areia", num singelo solo de sanfona.
Mesmo quem esperava por
mais standards do jazz no repertório, não deve ter saído decepcionado. Milton mostrou que sua relação com o jazz passa mais pela
liberdade sonora do que pelo vocabulário desse gênero.
Não foi por outra razão que jazzistas como Wayne Shorter e Pat
Metheny se renderam à originalidade de sua música. Milton pode
até recusar o rótulo de jazzista,
mas não deve nada aos figurões
desse gênero.
Avaliação:
Carlos Calado é jornalista e crítico musical, autor de "O Jazz como Espetáculo",
entre outros livros
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