São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 2006

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NINA HORTA

A última ceia

Se formos contar o que já escrevemos sobre bacalhau e chocolate nesta época do ano, a suspeita é que eles se extinguirão na próxima Páscoa. Num desses anos, resolvi ir a fundo, falar na própria ceia de quinta-feira, a última ceia mesmo de Jesus e apóstolos, Judas, coisa e tal. O conhecimento era parco. Empilhei livros e mais livros, quantas dificuldades, vocês nem imaginam. Impossível. Tudo era desconhecido e difícil de achar. Queria contar sobre a mulher que arrumou o lugar, a mesa, que arranjou a comida da festa, do pão ázimo.
Já ao acordar, ela pulava da cama escutando o cacarejar das galinhas. (Será que tinha cama, cama mesmo, na época? E galinheiro?)
Alugara a sala outra vez para uma grande ceia. No ano passado, o dinheiro viera a calhar, comprara mantimentos e até um lenço azul-rei que lhe continha o cabelo rebelde e grisalhos. (Qual o dinheiro usado? E as mulheres usavam panos na cabeça? Se usavam, de que cor?)
Desta vez, o filho arrumara os clientes. O milagreiro e alguns amigos, ao que sabia. Queriam, além das coisas de costume, uma bacia e um jarro d'água. Fácil, o filho se encarregaria da comida (De que material seriam as jarras e a bacia?)
Pegou a vassoura mais rija e saiu para a limpeza. (Vassoura em mão de mulher é coisa que sempre teve desde o começo do mundo.) Era a época em que renascia nela uma vontade de ordem, de botar tudo abaixo, varrer, varrer, vontade de fazer uma enxurrada passar pelo meio da casa arrastando com ela cobras e lagartos. (Sentimento comum no começo da primavera, só a expressão "cobras e lagartos", não sei, não.)
Odiava Jerusalém naqueles dias de sacrifício. (Reparar na pesquisa. Ainda encontrei no meio da confusão uma raça de carneiro de rabo tão gordo que o rabo precisava ser posto sobre um carrinho para que pudessem andar. Essa era a gordura usada para as conservas, os confits.) A Palestina inteira baixava às ruas, às tabernas, invadia o templo, o mercado, riam, cantava, brigava, muito alto, um exagero. E os guias chamavam os peregrinos com bandeiras vermelhas, caso se perdessem, e, suando, apontavam o túmulo dos profetas. Avalanches de lixo.
O pior não eram nem as gentes, mas os bichos. Todos aqueles cordeiros a balir desesperadamente, agoniados, o ar quente como o de um braseiro, pelos molhados de sangue coagulado, sangue esparramado por todos os lados, escorrendo pelas pedras, se juntando em poças, um horror.
Bom, limpa a sala, era hora de forrar as almofadas, cobrir a mesa baixa com toalha de linho. Tirou os linhos do baú, linhos cheirosos que de vez em quando abria ao sol. Passaria as toalhas a ferro, mas, pensando bem, gostava de deixar as marcas das dobras. (Dias de pesquisa... Linho? Quantos fios? Ferro? Como seria o ferro? As toalhas e as suas marcas pelo menos aparecem no Leonardo da Vinci.)
Desceu a escada que saía por fora da casa e que dava direto na horta. Chô, chô, galinhas, nada de comer meus verdes. Já me bastam os moleques neste dia. Saltam o muro para colher as alfaces, o agrião, o manjericão, os rabanetes e saem a vendê-los pelos olhos da cara, para as festas. Mas não os daqui de casa, meus marotos. (Muito provável, não acham?)
Juntou um molho de coentros (pois acreditem, coentro mesmo, igualzinho o da Bahia), o restante da chicória que as lagartas enchiam de furos (tudo orgânico) e arrancou do mais profundo da terra uma raiz (raiz forte).
Quebrou os galhos da romãzeira com cuidado (romã tinha, com certeza) e arrancou as folhas. Os homens espetariam o cordeiro em cruz e o assariam sobre brasas durante muito tempo, até a carne se soltar dos ossos. Bom para comer com o pão e a verdura.
Foi saindo da horta, fechou com cuidado o portão arruinado e viu lá longe os homens que se aproximavam como que curvados e arrasados pelo peso do cordeiro. Sentiu uma premonição, um arrepio nas tripas e correu a beber água fresca. Que bobagens de velha! Dia de Páscoa, esperança, agradecimento, queria era comer e beber muito e cantar hinos às bandeiras despregadas. Será que seria convidada? No ano passado fora. Ficaria por ali, a ver. (Sabemos que convidada não foi, algum vizinho piedoso há de tê-la incluído noutra festa.)


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