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NINA HORTA
A última ceia
Se formos contar o que já escrevemos sobre bacalhau e
chocolate nesta época do ano, a
suspeita é que eles se extinguirão
na próxima Páscoa. Num desses
anos, resolvi ir a fundo, falar na
própria ceia de quinta-feira, a última ceia mesmo de Jesus e apóstolos, Judas, coisa e tal. O conhecimento era parco. Empilhei livros
e mais livros, quantas dificuldades, vocês nem imaginam. Impossível. Tudo era desconhecido e
difícil de achar. Queria contar sobre a mulher que arrumou o lugar, a mesa, que arranjou a comida da festa, do pão ázimo.
Já ao acordar, ela pulava da cama escutando o cacarejar das galinhas. (Será que tinha cama, cama
mesmo, na época? E galinheiro?)
Alugara a sala outra vez para
uma grande ceia. No ano passado,
o dinheiro viera a calhar, comprara mantimentos e até um lenço
azul-rei que lhe continha o cabelo
rebelde e grisalhos. (Qual o dinheiro usado? E as mulheres usavam panos na cabeça? Se usavam,
de que cor?)
Desta vez, o filho arrumara os
clientes. O milagreiro e alguns
amigos, ao que sabia. Queriam,
além das coisas de costume, uma
bacia e um jarro d'água. Fácil, o filho se encarregaria da comida (De
que material seriam as jarras e a
bacia?)
Pegou a vassoura mais rija e saiu
para a limpeza. (Vassoura em
mão de mulher é coisa que sempre teve desde o começo do mundo.) Era a época em que renascia
nela uma vontade de ordem, de
botar tudo abaixo, varrer, varrer,
vontade de fazer uma enxurrada
passar pelo meio da casa arrastando com ela cobras e lagartos.
(Sentimento comum no começo
da primavera, só a expressão "cobras e lagartos", não sei, não.)
Odiava Jerusalém naqueles dias
de sacrifício. (Reparar na pesquisa. Ainda encontrei no meio da
confusão uma raça de carneiro de
rabo tão gordo que o rabo precisava ser posto sobre um carrinho
para que pudessem andar. Essa
era a gordura usada para as conservas, os confits.) A Palestina inteira baixava às ruas, às tabernas,
invadia o templo, o mercado,
riam, cantava, brigava, muito alto,
um exagero. E os guias chamavam os peregrinos com bandeiras
vermelhas, caso se perdessem, e,
suando, apontavam o túmulo dos
profetas. Avalanches de lixo.
O pior não eram nem as gentes,
mas os bichos. Todos aqueles cordeiros a balir desesperadamente,
agoniados, o ar quente como o de
um braseiro, pelos molhados de
sangue coagulado, sangue esparramado por todos os lados, escorrendo pelas pedras, se juntando
em poças, um horror.
Bom, limpa a sala, era hora de
forrar as almofadas, cobrir a mesa
baixa com toalha de linho. Tirou
os linhos do baú, linhos cheirosos
que de vez em quando abria ao
sol. Passaria as toalhas a ferro,
mas, pensando bem, gostava de
deixar as marcas das dobras.
(Dias de pesquisa... Linho? Quantos fios? Ferro? Como seria o ferro? As toalhas e as suas marcas pelo menos aparecem no Leonardo
da Vinci.)
Desceu a escada que saía por fora da casa e que dava direto na
horta. Chô, chô, galinhas, nada de
comer meus verdes. Já me bastam
os moleques neste dia. Saltam o
muro para colher as alfaces, o
agrião, o manjericão, os rabanetes
e saem a vendê-los pelos olhos da
cara, para as festas. Mas não os
daqui de casa, meus marotos.
(Muito provável, não acham?)
Juntou um molho de coentros
(pois acreditem, coentro mesmo,
igualzinho o da Bahia), o restante
da chicória que as lagartas enchiam de furos (tudo orgânico) e
arrancou do mais profundo da
terra uma raiz (raiz forte).
Quebrou os galhos da romãzeira com cuidado (romã tinha, com
certeza) e arrancou as folhas. Os
homens espetariam o cordeiro
em cruz e o assariam sobre brasas
durante muito tempo, até a carne
se soltar dos ossos. Bom para comer com o pão e a verdura.
Foi saindo da horta, fechou com
cuidado o portão arruinado e viu
lá longe os homens que se aproximavam como que curvados e arrasados pelo peso do cordeiro.
Sentiu uma premonição, um arrepio nas tripas e correu a beber
água fresca. Que bobagens de velha! Dia de Páscoa, esperança,
agradecimento, queria era comer
e beber muito e cantar hinos às
bandeiras despregadas. Será que
seria convidada? No ano passado
fora. Ficaria por ali, a ver. (Sabemos que convidada não foi, algum vizinho piedoso há de tê-la
incluído noutra festa.)
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