|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
Frases de vidro
Não posso negar que sou dado aos aforismos, mania que, creio eu, peguei dos surrealistas
|
NUMA DE minhas intervenções, na Flip, em Paraty (RJ),
em agosto passado, afirmei
que uma das piores coisas do mundo
é querer ter razão. Referia-me, implicitamente, à guerra entre judeus e
palestinos, mas exemplifiquei com
as brigas de casais. O cara insiste em
ter razão, discute com a mulher, ela
contra-argumenta, os dois se exaltam e daqui a pouco estão amuados,
cada um no seu canto. Cheios de razão, mas infelizes. "Não quero ter razão", disse eu, "quero ser feliz".
Mais tarde, durante a sessão de
autógrafos, as pessoas repetiam a
minha frase e pediam que eu escrevesse no livro. Um rapaz falou-me:
"Vou agora mesmo telefonar para
minha namorada e dizer a ela que
me desculpe, que eu não tinha razão
na discussão". À noite, no restaurante, várias pessoas vieram falar comigo sobre a frase e outros gritavam de longe: "Não quero ter razão".
Mas isso não é razão para me classificar de frasista. Se bem entendo,
frasista deve ser aquele sujeito que
fica bolando frases de efeito. Não é o
meu caso. Essa frase, por exemplo,
que tocou tanta gente, não a tinha
pensado antes, saiu no momento. A
verdade é que há muito reflito sobre
a insistência das pessoas em terem
razão, ainda quando se trate de um
assunto sem importância.
Não posso negar, porém, que sou
dado aos aforismos, mania que,
creio eu, peguei dos surrealistas, autores de frases irreverentes e inesquecíveis... Como se sabe, os aforismos devem supostamente encerrar
uma verdade, são sintéticas formulações da sabedoria popular, quando
não a voz de Deus falando por meio
dos profetas. Por isso mesmo, aquela turma de endiabrados que se juntaram à volta de André Breton valeu-se do aforismo para manifestar
sua irreverência. "Bate em tua mãe
enquanto ela é jovem", dizia uma
daquelas máximas, que me faz rir a
cada momento que dela me lembro,
como agora. Certamente, jamais
pensei em bater em minha mãe, embora, naquela época, fosse ela ainda
jovem. Outros aforismos são docemente subversivos como o que diz:
"Parents! Raccontez vos rêves a vos
enfants", que, traduzido, perde um
pouco a graça: "Pais! Contem seus
sonhos a seus filhos". E esse aqui do
pintor Francis Picabia, que mais tarde se aliaria a Marcel Duchamp no
movimento dadaísta: "As flores e os
bombons me dão dor de dentes". E,
por falar em dadaísmo, lembrei-me
da célebre frase de Tristan Tzara
que assegura: "O pensamento se faz
na boca", donde pode se ter originado o conceito surrealista de escrita
automática ou automatismo psíquico. Outro aforismo irreverente é este de Benjamin Péret, que depois
serviu como título de um de seus livros de poemas: "Desse pão não comerei", para contrariar a conhecida
frase bíblica que aconselha: "Não diga nunca desse pão não comerei,
dessa água não beberei". Foi inspirado nesses malucos-beleza que criei
meu primeiro aforismo: "O futuro é
dos porcos".
Como o uso do cachimbo faz a boca torta, certo dia, ao me deparar
com um livro que ensinava tudo sobre a crase, reagi: "Maria, mãe do Divino Cordeiro, craseava mal. E o
próprio Divino Cordeiro não era o
que se pode chamar de um bamba da
crase".
E segui o rumo à revista "Manchete", que ficava então na rua Frei Caneca. No caminho, fui inventando
novos aforismos: "Quem tem frase
de vidro não joga crase na frase do
vizinho". Cada vez mais animado,
bolei o aforismo que se tornaria famoso: "A crase não foi feita para humilhar ninguém". Na redação da
"Manchete", sentei-me à máquina e,
em vez de escrever o texto que me
cabia redigir, fiquei datilografando
as frases recém-inventadas e inventando outras. Satisfeito com o resultado, fui à procura do Nelson Rodrigues, que trabalhava naquele mesmo andar, na redação da "Manchete
Esportiva". Li os aforismos para ele,
que, após refletir por algum tempo,
sentenciou: "Essas máximas, meu
caro poeta, vêm em socorro de milhões de brasileiros aterrorizados
pela crase". Não sabia se estava falando sério ou gozando, mas, de
qualquer modo, agradeci-lhe a
opinião.
Naquela época, tornei-me fã de
um mestre brasileiro do aforismo,
que foi o barão de Itararé, autor de
uma sentença que encerrava então
uma verdade sociológica, antecipadora do Fome Zero: "Quando pobre
come frango, um dos dois está doente". Nesse mestre, creio eu, terá se
inspirado Millôr Fernandes para
criar aforismos de implacável realismo, como o que diz: "Todo mundo
começa Rimbaud e acaba Olegário
Mariano".
Se estes sábios gozadores da condição humana são frasistas, então,
não me importo de ser também tido
como tal, ainda que alguns degraus
abaixo.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Autor de best-seller diz conquistar as "espertas" Índice
|