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Duas visões sobre a sexualidade infantil
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Fiquei surpreso, outro dia,
com a pobre documentação
que reunimos sobre a luta pela
libertação do filme "Je Vous
Salue Marie". Foi proibido no
meio da década de 80, provocou protestos, choques com a
polícia. Atropelada pelo Plano
Cruzado (um desses planos
que criam nova moeda no Brasil), a luta pelo "Je Vous Salue
Marie", de Godard, caiu no esquecimento sem ter deixado
muitos rastros além daqueles
que ficam registrados pela mídia.
O mesmo não acontecerá
agora, espero, com a luta pela
liberação da obra de Nelson
Lerner, confiscada pelo juiz de
menores Siro Darlan, sob acusação de que explora o erotismo infantil.
O trabalho de Lerner estava
exposto num museu. Ele é professor de belas artes na Escola
do Parque Lage, a mesma que,
na década dos 80, revelou toda
uma geração de novos artistas
plásticos. Apesar das barbas
brancas e de sua condição de
avô, Lerner nunca perdeu sua
capacidade de questionar o
mundo por meio de sua arte e
aconselha seus alunos a abordarem criticamente o mundo
que os cerca.
Dois seminários foram realizados no Rio envolvendo o
confisco do trabalho de Lerner.
Intelectuais falaram sobre os
fundamentos históricos da repressão estética, foram apresentados casos de perseguição
nos Estados Unidos, em outras
décadas, e mesmo alguns casos
brasileiros no período da ditadura foram dissecados pelo
crítico Frederico Morais.
Até aí, tudo bem. Inúmeras
galerias e escolas se solidarizaram com Lerner e os artistas
plásticos do Rio ampliaram
seus conhecimentos sobre a luta pela liberdade de expressão
em todas as épocas.
No final de um dos seminários, a intervenção de um amigo psicanalista acabou abrindo para mim a grande pista
para se entender a repressão
contra Lerner. O psicanalista
avisou, ao microfone, que não
era artista plástico, mas que
gostaria de dar uma contribuição pontual ao debate.
É que a obra de Lerner procura ser precisamente uma crítica a um tipo de erotismo infantil consagrado pelos cartões-postais onde aparecem
bebês rechonchudos, cercados
de flores, alguns deles assinados por Anne Gedes.
O psicanalista queria avisar
apenas que o gabinete do juiz
de menores era todo decorado
por obras de Gedes, portanto
pelo tipo de exploração do erotismo infantil que Lerner denunciava em seu quadro
apreendido.
Claro, a platéia riu, todos
nós rimos. Também a proibição de "Je Vous Salue Marie"
tem um lado secreto jamais revelado, a não ser por certas
confidências do então ministro
da Justiça, Fernando Lyra.
Só agora, se formos documentar cuidadosamente a
apreensão da obra de Lerner,
esse detalhe deve ser considerado. Lerner, num certo sentido, é um moralista que se indigna com a exploração da
sensualidade infantil; o juiz de
menores também. A superioridade da posição moral de Lerner não está apenas no fato de
que ele a transfigura em obra
de arte, mas sobretudo porque
ela se limita a criticar.
O juiz de menores transforma sua posição em norma e
confisca a obra que tem uma
visão antagônica a sua. Naturalmente que tudo isso não
aparece no fluxo da consciência e não foi acidental que o
detalhe tenha sido levantado
por um psicanalista.
Não posso reclamar da mídia
que ignorou essas sutilezas.
Também pertenço a ela e estou
relatando o episódio que aconteceu no Palácio Capanema,
cheio de fantasmas da era
Vargas. Lamento apenas que
minha crônica não seja uma
crônica de televisão, como as
vídeo-cartas que realizei na
TV Bandeirantes. Com imagens, todos entenderiam na
hora a violência que se abate
contra um grande artista brasileiro, na verdade, uma violência contra a liberdade de
expressão, algo que cai fácil no
esquecimento nesse período
pós-ditadura militar.
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