São Paulo, segunda, 13 de abril de 1998

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Duas visões sobre a sexualidade infantil

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Fiquei surpreso, outro dia, com a pobre documentação que reunimos sobre a luta pela libertação do filme "Je Vous Salue Marie". Foi proibido no meio da década de 80, provocou protestos, choques com a polícia. Atropelada pelo Plano Cruzado (um desses planos que criam nova moeda no Brasil), a luta pelo "Je Vous Salue Marie", de Godard, caiu no esquecimento sem ter deixado muitos rastros além daqueles que ficam registrados pela mídia.
O mesmo não acontecerá agora, espero, com a luta pela liberação da obra de Nelson Lerner, confiscada pelo juiz de menores Siro Darlan, sob acusação de que explora o erotismo infantil.
O trabalho de Lerner estava exposto num museu. Ele é professor de belas artes na Escola do Parque Lage, a mesma que, na década dos 80, revelou toda uma geração de novos artistas plásticos. Apesar das barbas brancas e de sua condição de avô, Lerner nunca perdeu sua capacidade de questionar o mundo por meio de sua arte e aconselha seus alunos a abordarem criticamente o mundo que os cerca.
Dois seminários foram realizados no Rio envolvendo o confisco do trabalho de Lerner. Intelectuais falaram sobre os fundamentos históricos da repressão estética, foram apresentados casos de perseguição nos Estados Unidos, em outras décadas, e mesmo alguns casos brasileiros no período da ditadura foram dissecados pelo crítico Frederico Morais.
Até aí, tudo bem. Inúmeras galerias e escolas se solidarizaram com Lerner e os artistas plásticos do Rio ampliaram seus conhecimentos sobre a luta pela liberdade de expressão em todas as épocas.
No final de um dos seminários, a intervenção de um amigo psicanalista acabou abrindo para mim a grande pista para se entender a repressão contra Lerner. O psicanalista avisou, ao microfone, que não era artista plástico, mas que gostaria de dar uma contribuição pontual ao debate.
É que a obra de Lerner procura ser precisamente uma crítica a um tipo de erotismo infantil consagrado pelos cartões-postais onde aparecem bebês rechonchudos, cercados de flores, alguns deles assinados por Anne Gedes.
O psicanalista queria avisar apenas que o gabinete do juiz de menores era todo decorado por obras de Gedes, portanto pelo tipo de exploração do erotismo infantil que Lerner denunciava em seu quadro apreendido.
Claro, a platéia riu, todos nós rimos. Também a proibição de "Je Vous Salue Marie" tem um lado secreto jamais revelado, a não ser por certas confidências do então ministro da Justiça, Fernando Lyra.
Só agora, se formos documentar cuidadosamente a apreensão da obra de Lerner, esse detalhe deve ser considerado. Lerner, num certo sentido, é um moralista que se indigna com a exploração da sensualidade infantil; o juiz de menores também. A superioridade da posição moral de Lerner não está apenas no fato de que ele a transfigura em obra de arte, mas sobretudo porque ela se limita a criticar.
O juiz de menores transforma sua posição em norma e confisca a obra que tem uma visão antagônica a sua. Naturalmente que tudo isso não aparece no fluxo da consciência e não foi acidental que o detalhe tenha sido levantado por um psicanalista.
Não posso reclamar da mídia que ignorou essas sutilezas. Também pertenço a ela e estou relatando o episódio que aconteceu no Palácio Capanema, cheio de fantasmas da era Vargas. Lamento apenas que minha crônica não seja uma crônica de televisão, como as vídeo-cartas que realizei na TV Bandeirantes. Com imagens, todos entenderiam na hora a violência que se abate contra um grande artista brasileiro, na verdade, uma violência contra a liberdade de expressão, algo que cai fácil no esquecimento nesse período pós-ditadura militar.



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