São Paulo, Terça-feira, 13 de Abril de 1999
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ARNALDO JABOR
Vivemos a grande pagodização da cultura brasileira

O Brasil é uma região dentro de nós mesmos que está mudando. Não falo de economia ou política, falo da cultura de um país que artistas e intelectuais gostariam que existisse, um dia. Antes, nossa eterna dificuldade de desenvolvimento nos levou a uma supervalorização da cultura como um substitutivo para a própria política. Nosso futuro era uma fantasia que nos iludia e consolava: "Somos pobres, mas com uma cultura rica...". Agora, nossa cultura "rica" está ameaçada de pobreza para sempre.
Incrivelmente, nossa miséria era um estímulo ao avesso. Até a ditadura foi um "incentivo" para a criação. O autoritarismo violento e a censura nos deram uma identidade provisória, de cabeça para baixo. Valíamos pelo que "não" tínhamos, éramos vítimas claras, legíveis, fadadas a uma luta pela liberdade.
Parodiando Sartre, nunca fomos tão "puros" como durante a ditadura. Artistas de classe média se identificaram com os "outros" oprimidos, os da fome e pobreza. Salvá-los virou nosso problema existencial, nossa bandeira e, até, nosso lucro.
O subdesenvolvimento nos dava uma "transcendência vitimizada", acima dos "falsos problemas europeus", como o niilismo, o absurdo ou o medíocre comercialismo americano. O subdesenvolvimento era nossa maior riqueza. A nacionalidade incompleta, nossa maior missão.
Outra coisa que nos dava régua e compasso era a divisão do mundo entre centro e periferia. Esse "bem e mal" geográfico nos fazia "sujeitos", em luta com os opressores internacionais. No cinema, tínhamos a aura de mártires cristãos enfrentando o leão da Metro.
No entanto, essa dicotomia colônia/metrópole também servia para absolver nossos erros endógenos. Nossos defeitos institucionais endêmicos ficavam ocultados -se a culpa era dos outros, poderíamos viver inocentes, emprestando às nossas fraquezas (analfabetismo, fome, desorganização) um sabor de "originalidade" nacional. Fazíamos a glamourização da incompetência pelo jogo de cintura, da "zona geral" pelo charme da mestiçagem, da falta de lei pela beleza do "jeitinho". Eram os dotes "florestais", a poética da precariedade contra a técnica dos países desenvolvidos "decadentes".
A idéia de "revolução" era vivida como um luxo. Intelectuais falavam em "revolução", como se fosse uma moda literária ou uma nova banda de rock. Isso nos deu uma ridícula falta de autocrítica, mas nos dava um "élan" quixotesco para criarmos uma "cultura nova". Toda a criação dos anos 60 aos 80 tem essa pátina.
A desgraça de 64 teve um "lado bom" (se podemos falar assim), pois tivemos a fecunda decepção de nos descobrirmos absolutamente despreparados para criar e defender uma democracia. O ano de 64 nos "ajudou" a ver o atraso com novos olhos, pois começamos a criticar as certezas esquemáticas. Já tínhamos tido, é verdade, um avanço na tentativa de "dialetizar" nossa situação de dependência, pela antropofagia de Oswald, do modernismo, que tornou mais porosas as fronteiras com a metrópole.
Depois de 64, com o cinema novo e o tropicalismo, aumenta a noção dessa complexidade "dependente", embora com um certo "sebastianismo" denegado, na esperança de encontrar saídas para a dominação cultural.
De repente, a "revolução" morreu, junto com a URSS, de morte muda, sem sangue, diante dos olhos deslumbrados do capitalismo. Eufórica, a América deflagrou seu maior "raid" ideológico mundial, partindo para implantar a tal "democracia" liberal no planeta, o que para eles, no duro, significa "abertura de mercados".
O trauma da globalização foi, para nós, mais profundo que a derrota da democracia populista de 64, só que menos visível, indolor, quase doce, com um cheiro de progresso mercadológico. A cultura do "pensamento único" esvaziou nossos velhos estandartes de luta em defesa do velho Estado-Nação.
Para alguns, essa mudança macro-histórica foi vivida como uma esperança: "Sim, agora vamos participar desta "trickle down culture", vamos comer as migalhas vivificantes que caem da mesa dos senhores globais".
Outros partiram para um atitude impotente e feroz, rancorosa e regressiva, defendendo com ardor neonacionalista a ilusória auto-suficiência fracassada. Não suportaram ficar órfãos de exploradores óbvios, sem inimigos claros, substituídos pelo difuso "capitalismo sem rosto" de hoje.
O trauma global trouxe também um "neocinismo", um doce "malaise", justificando tristeza em bares, mais cigarros, mais melancolia santificada, mais justificação para a falta de imaginação e talento. Nada mais voluptuoso para certos intelectuais que um beco sem saída.
Outros artistas continuaram trabalhando, mas num "faquirismo" autoflagelante: "Ninguém me vê, ninguém me ouve, mas eu faço".
Mas, no duro, a posição mais comum entre artistas e intelectuais brasileiros é a da aceitação cínica da impossibilidade como um alívio, do deboche diante da derrota consumada: "Oba... acabou a utopia - vamos ganhar uma grana!".
A verdade é que a grande catástrofe em nossa cultura foi a chegada da "destranscendentalização" da vida. Por via da americanização do mundo, perdemos a aura sagrada da teleologia que nos justificava, e nos defrontamos com um mercado comandado de fora, abolindo o brilho do velho sonho ibérico, que tingia de beleza nossa impotência política.
O que vemos no Brasil hoje é o espalhafatoso crescimento da cultura de massas sem traços de tradição, num descaramento cultural só igualado pela bruta corrupção da vida administrativa. O mercado cultural de merda cresce como nunca, sem nenhuma vantagem iluminista. Nunca tivemos tanta vitalidade na "ala estúpida" da vida brasileira. Uma economia "casa da mãe Joana" vende o país na bacia das almas; uma cultura sem defesas leva à ditadura dos ratinhos, das chiquititas. Não se trata, como pensávamos, da invasão de mensagens "ideológicas". Conteúdos se esvanescem. O perigo americano é a forma mercantil desbragada que a cultura brasileira tomou, a baixa democracia da ignorância.
Hoje estamos sem o velho Estado-Nação e sem um nicho no mundo global. Nem centro, nem periferia; somos uns juros altos, somos um dólar flutuante, somos apenas um suspense econômico. A democracia é vivida como tolerância à ilegalidade e, na cultura, equaliza todas as mediocridades, "pagodizando" a vida nacional - um grande ânus na boca da garrafa. Diante disso, nossos intelectuais e artistas tomam porres, riem cinicamente ou enchem o rabo de dinheiro. Estamos correndo perigo; a luta pela cultura brasileira é mais sutil, mas tem de continuar. Precisamos urgentemente de imaginação política.


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