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ARNALDO JABOR
Vivemos a grande pagodização da cultura brasileira
O Brasil é uma região dentro
de nós mesmos que está mudando. Não falo de economia
ou política, falo da cultura de
um país que artistas e intelectuais gostariam que existisse,
um dia. Antes, nossa eterna dificuldade de desenvolvimento
nos levou a uma supervalorização da cultura como um substitutivo para a própria política.
Nosso futuro era uma fantasia
que nos iludia e consolava:
"Somos pobres, mas com uma
cultura rica...". Agora, nossa
cultura "rica" está ameaçada
de pobreza para sempre.
Incrivelmente, nossa miséria
era um estímulo ao avesso. Até
a ditadura foi um "incentivo"
para a criação. O autoritarismo violento e a censura nos deram uma identidade provisória, de cabeça para baixo. Valíamos pelo que "não" tínhamos, éramos vítimas claras, legíveis, fadadas a uma luta pela
liberdade.
Parodiando Sartre, nunca fomos tão "puros" como durante
a ditadura. Artistas de classe
média se identificaram com os
"outros" oprimidos, os da fome
e pobreza. Salvá-los virou nosso problema existencial, nossa
bandeira e, até, nosso lucro.
O subdesenvolvimento nos
dava uma "transcendência vitimizada", acima dos "falsos
problemas europeus", como o
niilismo, o absurdo ou o medíocre comercialismo americano. O subdesenvolvimento era
nossa maior riqueza. A nacionalidade incompleta, nossa
maior missão.
Outra coisa que nos dava régua e compasso era a divisão
do mundo entre centro e periferia. Esse "bem e mal" geográfico nos fazia "sujeitos", em luta
com os opressores internacionais. No cinema, tínhamos a
aura de mártires cristãos enfrentando o leão da Metro.
No entanto, essa dicotomia
colônia/metrópole também
servia para absolver nossos erros endógenos. Nossos defeitos
institucionais endêmicos ficavam ocultados -se a culpa era
dos outros, poderíamos viver
inocentes, emprestando às nossas fraquezas (analfabetismo,
fome, desorganização) um sabor de "originalidade" nacional. Fazíamos a glamourização da incompetência pelo jogo
de cintura, da "zona geral" pelo charme da mestiçagem, da
falta de lei pela beleza do "jeitinho". Eram os dotes "florestais", a poética da precariedade contra a técnica dos países
desenvolvidos "decadentes".
A idéia de "revolução" era vivida como um luxo. Intelectuais falavam em "revolução",
como se fosse uma moda literária ou uma nova banda de
rock. Isso nos deu uma ridícula
falta de autocrítica, mas nos
dava um "élan" quixotesco para criarmos uma "cultura nova". Toda a criação dos anos 60
aos 80 tem essa pátina.
A desgraça de 64 teve um "lado bom" (se podemos falar assim), pois tivemos a fecunda
decepção de nos descobrirmos
absolutamente despreparados
para criar e defender uma democracia. O ano de 64 nos
"ajudou" a ver o atraso com
novos olhos, pois começamos a
criticar as certezas esquemáticas. Já tínhamos tido, é verdade, um avanço na tentativa de
"dialetizar" nossa situação de
dependência, pela antropofagia de Oswald, do modernismo,
que tornou mais porosas as
fronteiras com a metrópole.
Depois de 64, com o cinema
novo e o tropicalismo, aumenta a noção dessa complexidade
"dependente", embora com um
certo "sebastianismo" denegado, na esperança de encontrar
saídas para a dominação cultural.
De repente, a "revolução" morreu, junto com a URSS, de morte
muda, sem sangue, diante dos
olhos deslumbrados do capitalismo. Eufórica, a América deflagrou
seu maior "raid" ideológico mundial, partindo para implantar a tal
"democracia" liberal no planeta, o
que para eles, no duro, significa
"abertura de mercados".
O trauma da globalização foi,
para nós, mais profundo que a derrota da democracia populista de
64, só que menos visível, indolor,
quase doce, com um cheiro de progresso mercadológico. A cultura do
"pensamento único" esvaziou nossos velhos estandartes de luta em
defesa do velho Estado-Nação.
Para alguns, essa mudança macro-histórica foi vivida como uma
esperança: "Sim, agora vamos participar desta "trickle down culture",
vamos comer as migalhas vivificantes que caem da mesa dos senhores globais".
Outros partiram para um atitude impotente e feroz, rancorosa e
regressiva, defendendo com ardor
neonacionalista a ilusória auto-suficiência fracassada. Não suportaram ficar órfãos de exploradores
óbvios, sem inimigos claros, substituídos pelo difuso "capitalismo
sem rosto" de hoje.
O trauma global trouxe também
um "neocinismo", um doce "malaise", justificando tristeza em bares, mais cigarros, mais melancolia santificada, mais justificação
para a falta de imaginação e talento. Nada mais voluptuoso para
certos intelectuais que um beco
sem saída.
Outros artistas continuaram trabalhando, mas num "faquirismo"
autoflagelante: "Ninguém me vê,
ninguém me ouve, mas eu faço".
Mas, no duro, a posição mais comum entre artistas e intelectuais
brasileiros é a da aceitação cínica
da impossibilidade como um alívio, do deboche diante da derrota
consumada: "Oba... acabou a utopia - vamos ganhar uma grana!".
A verdade é que a grande catástrofe em nossa cultura foi a chegada da "destranscendentalização"
da vida. Por via da americanização do mundo, perdemos a aura
sagrada da teleologia que nos justificava, e nos defrontamos com
um mercado comandado de fora,
abolindo o brilho do velho sonho
ibérico, que tingia de beleza nossa
impotência política.
O que vemos no Brasil hoje é o espalhafatoso crescimento da cultura de massas sem traços de tradição, num descaramento cultural
só igualado pela bruta corrupção
da vida administrativa. O mercado cultural de merda cresce como
nunca, sem nenhuma vantagem
iluminista. Nunca tivemos tanta
vitalidade na "ala estúpida" da vida brasileira. Uma economia "casa da mãe Joana" vende o país na
bacia das almas; uma cultura sem
defesas leva à ditadura dos ratinhos, das chiquititas. Não se trata,
como pensávamos, da invasão de
mensagens "ideológicas". Conteúdos se esvanescem. O perigo americano é a forma mercantil desbragada que a cultura brasileira tomou, a baixa democracia da ignorância.
Hoje estamos sem o velho Estado-Nação e sem um nicho no mundo global. Nem centro, nem periferia; somos uns juros altos, somos
um dólar flutuante, somos apenas
um suspense econômico. A democracia é vivida como tolerância à
ilegalidade e, na cultura, equaliza
todas as mediocridades, "pagodizando" a vida nacional - um
grande ânus na boca da garrafa.
Diante disso, nossos intelectuais e
artistas tomam porres, riem cinicamente ou enchem o rabo de dinheiro. Estamos correndo perigo; a
luta pela cultura brasileira é mais
sutil, mas tem de continuar. Precisamos urgentemente de imaginação política.
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