São Paulo, sábado, 13 de maio de 2000


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CANNES

"Estorvo", de Ruy Guerra, trata do tempo com razão e imagens

CACÁ DIEGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

R uy guerra chegou ao Brasil quando os primeiros filmes do cinema novo começavam a ser planejados e logo se tornou um dos nomes mais importantes do movimento. Ele trouxe para o cinema brasileiro os modernos conhecimentos técnicos que havia adquirido estudando em Paris, além de enriquecê-lo com um certo rigor formal e o gosto pela dissidência.
Ruy Guerra introduziu um pouco de obsessão cartesiana pelas idéias, no vendaval de romantismo barroco que soprava, naqueles anos, a cultura brasileira.
É desse período o extraordinário "Os Fuzis", um dos filmes que, ao lado de "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol", tornou o cinema novo conhecido no mundo, por meio de festivais internacionais.
Com vocação de viajante e cidadão do mundo, Ruy Guerra não parou quieto no Brasil, vivendo sucessivamente na França, em Moçambique, Cuba, no México, em Portugal, deixando em cada porto alguns belos filmes e amigos como García Márquez, Jack Lang e Samora Machel.
Embora sempre voltasse por aqui, ele agora retorna com ênfase especial, enfiando o pé na porta do cinema brasileiro.
"Estorvo", que será exibido amanhã na competição oficial do 53º Festival Internacional de Cinema de Cannes, é um filme de exceção, contra a corrente hegemônica do cinema mundial contemporâneo. Seus personagens não reagem segundo uma lógica do realismo psicológico, sua câmera não é um mero aparelho de registro da encenação teatral. Seu tema, sobretudo, não é o de uma trama dramática qualquer, mas o próprio tempo e seu inexorável movimento rumo à morte.
É surpreendente como um filme baseado em obra literária (o romance de Chico Buarque) é capaz de manter a densidade dela e, ainda assim, ser uma radical experiência de cinema.
Nela, Ruy Guerra retoma a evolução do cinema de onde ele se desviou, no final do cinema mudo, quando se preparava para ser uma arte inédita e autônoma, se tornando, em vez disso, teatro filmado, folhetim discursivo, melodrama populista.
"Estorvo" não é construído a partir de uma estrutura dramática que se impõe à fabricação de suas imagens; ao contrário, ele se organiza como um quebra-cabeças ideológico, a partir do valor de cada plano, do gosto pela construção deles, signos de uma língua nova desenhada com luz e movimento, como numa colagem expressionista, como em Murnau, Mizoguchi ou Mario Peixoto.
Em busca permanente de imagens nunca vistas, Ruy Guerra cria alguns planos inesquecíveis (como, por exemplo, o de uma vaca a lamber a janela suja de uma viatura ou o da mão de uma menina sobre o joelho do irmão). A beleza eficiente deles é o principal assunto do filme. Em geral, no cínico e pessimista cinema de hoje, esse gosto formal gera filmes frios e distantes; quando algum sentimento exala das telas, é quase sempre como artifício de demagogia dramatúrgica.
Ruy Guerra inverte o processo, aqui a alegre emoção da forma dialoga com a dor da razão humana. "Estorvo" é um filme que se vê com espanto. Esse ano, uma nova e generosa safra de filmes brasileiros, da qual "Estorvo" é um expoente, confirma que não é por falta de qualidade que a crise se instala em nosso cinema.
Os cineastas bem que estão cumprindo o seu papel. Como, porém, eles não são os únicos responsáveis pelo futuro do cinema desse país, outros atores desse interminável drama é que não devem estar cumprindo os seus.

    


Cacá Diegues é cineasta, diretor de "Orfeu", "Tieta do Agreste", "Xica da Silva" e "Bye Bye Brasil", entre outros


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