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CANNES
"Estorvo", de Ruy Guerra, trata do tempo com razão e imagens
CACÁ DIEGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA
R uy guerra chegou ao
Brasil quando os primeiros
filmes do cinema novo começavam a ser planejados e logo se tornou um dos nomes mais importantes do movimento. Ele trouxe
para o cinema brasileiro os modernos conhecimentos técnicos
que havia adquirido estudando
em Paris, além de enriquecê-lo
com um certo rigor formal e o
gosto pela dissidência.
Ruy Guerra introduziu um pouco de obsessão cartesiana pelas
idéias, no vendaval de romantismo barroco que soprava, naqueles anos, a cultura brasileira.
É desse período o extraordinário "Os Fuzis", um dos filmes que,
ao lado de "Vidas Secas" e "Deus e
o Diabo na Terra do Sol", tornou
o cinema novo conhecido no
mundo, por meio de festivais internacionais.
Com vocação de viajante e cidadão do mundo, Ruy Guerra não
parou quieto no Brasil, vivendo
sucessivamente na França, em
Moçambique, Cuba, no México,
em Portugal, deixando em cada
porto alguns belos filmes e amigos como García Márquez, Jack
Lang e Samora Machel.
Embora sempre voltasse por
aqui, ele agora retorna com ênfase
especial, enfiando o pé na porta
do cinema brasileiro.
"Estorvo", que será exibido
amanhã na competição oficial do
53º Festival Internacional de Cinema de Cannes, é um filme de
exceção, contra a corrente hegemônica do cinema mundial contemporâneo. Seus personagens
não reagem segundo uma lógica
do realismo psicológico, sua câmera não é um mero aparelho de
registro da encenação teatral. Seu
tema, sobretudo, não é o de uma
trama dramática qualquer, mas o
próprio tempo e seu inexorável
movimento rumo à morte.
É surpreendente como um filme baseado em obra literária (o
romance de Chico Buarque) é capaz de manter a densidade dela e,
ainda assim, ser uma radical experiência de cinema.
Nela, Ruy Guerra retoma a evolução do cinema de onde ele se
desviou, no final do cinema mudo, quando se preparava para ser
uma arte inédita e autônoma, se
tornando, em vez disso, teatro filmado, folhetim discursivo, melodrama populista.
"Estorvo" não é construído a
partir de uma estrutura dramática
que se impõe à fabricação de suas
imagens; ao contrário, ele se organiza como um quebra-cabeças
ideológico, a partir do valor de cada plano, do gosto pela construção deles, signos de uma língua
nova desenhada com luz e movimento, como numa colagem expressionista, como em Murnau,
Mizoguchi ou Mario Peixoto.
Em busca permanente de imagens nunca vistas, Ruy Guerra
cria alguns planos inesquecíveis
(como, por exemplo, o de uma
vaca a lamber a janela suja de uma
viatura ou o da mão de uma menina sobre o joelho do irmão). A
beleza eficiente deles é o principal
assunto do filme. Em geral, no cínico e pessimista cinema de hoje,
esse gosto formal gera filmes frios
e distantes; quando algum sentimento exala das telas, é quase
sempre como artifício de demagogia dramatúrgica.
Ruy Guerra inverte o processo,
aqui a alegre emoção da forma
dialoga com a dor da razão humana. "Estorvo" é um filme que se vê
com espanto. Esse ano, uma nova
e generosa safra de filmes brasileiros, da qual "Estorvo" é um expoente, confirma que não é por
falta de qualidade que a crise se
instala em nosso cinema.
Os cineastas bem que estão
cumprindo o seu papel. Como,
porém, eles não são os únicos responsáveis pelo futuro do cinema
desse país, outros atores desse interminável drama é que não devem estar cumprindo os seus.
Cacá Diegues é cineasta, diretor de "Orfeu", "Tieta do Agreste", "Xica da Silva" e "Bye Bye Brasil", entre outros
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