São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 2005

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"O SEGREDO DE VERA DRAKE"

Mike Leigh capta espírito dos anos 50

CRÍTICO DA FOLHA

Desde que Cannes se firmou como a grande feira mundial do cinema, o Festival de Veneza vem marcando sua personalidade pelo destaque dado à produção européia e de teor mais "artístico" do que "comercial" (as aspas entram aí por tudo de falso que pode haver nesse tipo de classificação).
No mais, Veneza é o festival mais próximo do Vaticano, ou seja: não há melhor lugar para enviar recados à Igreja Católica.
Talvez seja esse o motivo principal para "O Segredo de Vera Drake" ter ganhado o Leão de Ouro. O outro: "O Segredo de Vera Drake" é um filme inglês que retoma o tratamento extremamente carinhoso que parte desse cinema dedica à classe operária -uma tradição que deve muito a Ken Loach e, por vias transversas, a Margaret Thatcher.
Essa classe é representada aqui, sobretudo, por Vera Drake, mulher bondosa, solidária, simpática, que ganha a vida na Inglaterra do início dos anos 50 como faxineira e se dedica, nas horas vagas, à função de aborteira, que exerce gratuitamente, pois seu objetivo é ajudar as garotas com problemas.
Existem traços interessantes na construção dos personagens: a bondade de Vera é um ponto absolutamente central, não só porque serve de referência, como porque parece se propagar pelas pessoas que lhe são próximas. Haverá, claro, alguns contrapontos -e Mike Leigh paga seu tributo à construção americana, como quase todos hoje em dia. Assim, a uma Vera que faz abortos de graça corresponde sua velha amiga, que agencia os abortos e tira dinheiro das moças. E, se Vera é essa Amélia, sua cunhada é uma mulher revoltantemente fútil.
É preciso, em suma, construir oposições, criar um pouco de vilania -e o roteiro o faz adequadamente-, menos para que a bondade de Vera se torne mais manifesta, e mais para que nós, espectadores, possamos sentir com mais intensidade as desgraças que a horas tantas se abaterão sobre seus ombros.
Outros momentos do roteiro integram-se não tão bem ao conjunto. A idéia de mostrar os "problemas" e o conseqüente aborto de uma garota rica (no caso, filha de uma patroa de Vera), numa clínica e com todos os cuidados, é uma delas: parece enfiada na trama a machado, para demonstrar a diferença entre os riscos corridos pelos ricos e pelos pobres.
A existência dessa diferença nos países onde o aborto é proibido -como a Inglaterra dos anos 50 e o Brasil até os dias de hoje- é real e dramática (para não dizer criminosa). Nem por isso dir-se-á que a construção do filme é mais perfeita por isso.
Ressalte-se por fim a ambientação dessa Inglaterra dos anos 50, menos pela reconstituição exterior dos eventos, e mais pela capacidade de captar o espírito de um tempo em que conviviam o moralismo, a alegria do pós-guerra, os perigos da era atômica. Esse é, provavelmente, o ponto forte deste filme, no geral mais interessante pelos temas que aborda do que pela abordagem cinematográfica que lhes dá. (INÁCIO ARAUJO)


O Segredo de Vera Drake
Vera Drake
  
Direção: Mike Leigh
Produção: Inglaterra/França, 2004
Com: Imelda Staunton, Richard Graham
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Sala UOL e circuito



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