|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERREIRA GULLAR
Filosofia de aranha
Afinal, não é essa a tarefa desses bichos: fazer armadilhas para pegar as moscas e comê-las?
|
DEVO ADMITIR que, a cada dia,
fico mais perplexo diante do
mundo. Não tenho explicação para coisas aparentemente tão
simples como a existência das aranhas. Há quem diga que elas têm
serventia e possivelmente terão, como, por exemplo, comer as moscas.
E as moscas, para que servem as
moscas? Responderão: para ser comidas pelas aranhas, que são comidas pelas lagartixas, seres esses, todos eles, cada vez mais raros em nosso ambiente doméstico.
Aqui em casa, de vez em quando,
surge uma lagartixa, que me acostumei, desde menino, a chamar de osga. Ela é branca, às vezes transparente e, de repente, aparece grudada
à parede da cozinha, quando acendo
a luz. Na época em que meu gatinho
ainda vivia, ele era o primeiro a se
dar conta da presença da osga e logo
subia no armário da pia, de olhos fixos nela; e miava, pedindo minha
ajuda para capturá-la.
Em vez disso, tratava de tirá-lo de
lá, apagava a luz e fechava a porta da
cozinha. Ele insistia, miando diante
da porta fechada, mas eu fingia que
não estava entendendo. Certa noite,
surpreendi-o na sala, dando um bote
numa lagartixa que se aventurara a
passear pela casa. Corri em socorro
dela, que já perdera o rabo, e a levei
de volta à área de serviço, que é o lugar de lagartixas.
Depois que meu gato morreu, o
aparecimento de uma ou outra osga,
seja na cozinha ou onde for, já não
me causa a mesma aflição. Mas, faz
duas semanas, a empregada encontrou um filhote delas, morto no corredor, entre a sala e o escritório; devo tê-lo atropelado, involuntariamente. Fiquei penalizado -e não é
que, dias depois, me surge outro filhote no chão do banheiro? Tentei
pegá-lo para evitar que tivesse a
mesma sorte do irmão, mas ele, rebolando, correu, entrou no ralo e sumiu. Melhor assim.
É um problema a existência desses bichos delicados, que podemos
chamar de animais domésticos, embora habitem nossa casa. São, de fato, moradores clandestinos, que surgem não se sabe de onde e nos surpreendem. Já escrevi sobre eles
-não sobre as lagartixas, mas sobre
as aranhas. Contei, numa crônica, o
flagra que dei numa delas, no meu
escritório -mas noutro apartamento, da rua Visconde de Pirajá. Era
uma tarde de domingo e, enquanto o
pessoal se divertia na praia, estava
ela ali, pertinaz, cuidando da vida:
sob o peitoril da janela, onde armara
sua teia, acabara de capturar uma
mosca incauta, que, sem perda de
tempo, empacotava em sua teia.
Assistia eu àquilo, sem tomar partido, e a segui com os olhos quando
empurrou a presa empacotada para
o centro da teia, onde começou a devorá-la. Esse espetáculo feroz e silencioso ocorria em meu escritório,
numa tarde linda de domingo, em
Ipanema, sem que ninguém, afora
eu, se desse conta. Enquanto lá fora,
pensei, passam os ônibus e as pessoas cruzam a rua com barracas de
praia nos ombros, está esta aranha
aqui, sinistra, a devorar uma pobre
mosca. Mas, afinal, não é essa a tarefa das aranhas: preparar armadilhas
para capturar as moscas e comê-las?
Não sei se as moscas têm família,
pois, se tiverem, será terrível para os
parentes verem um membro do grupo ser devorado por um pequeno
monstro de muitas pernas e mente
ardilosa. Já eu, que nem mosca sou,
nem aranha, mantenho-me como
observador imparcial da tragédia.
Depois, mudei de casa e de país.
Contra minha vontade, andei pelo
mundo, como uma mosca a fugir das
aranhas, até que um dia, já sob o regime democrático, deparo-me com
uma aranha ao abrir o "Dicionário
de Filosofia", de José Ferrater Mora.
Era uma delas bem menor que uma
mosca e que deveria alimentar-se de
bichos minúsculos. Mas, naquele
momento, não pensei nisso, tão surpreso fiquei ao vê-la, levíssima,
apoiada em suas oito finíssimas pernas, deslocar-se sobre a página impressa, como uma bolha de ar, e ir
postar-se na margem superior da
página, donde ficou a observar-me.
Estava, sem dúvida alguma, assustada e surpresa, pois, nascida e criada dentro de um dicionário, jamais
vira um ser humano. De minha parte, estava também surpreso, pois jamais imaginara a existência de semelhante indivíduo habitando minha casa, oculto entre as páginas de
um de meus livros. E de novo me
veio à mente aquela pergunta:
-Para que servem as aranhas?
E ela, ou por ter adivinhado o que
eu pensara ou por ter me ouvido balbuciar a pergunta, respondeu:
-Quer parar de buscar finalidade
em tudo?! E você, para que serve? E
este planeta, e o Sol e as galáxias, para que servem?
Para evitar polêmica, tratei de fechar o livro, cuidadosamente, de
modo a não machucá-la.
Texto Anterior: Novelas da semana Próximo Texto: Música popular: Festa da Virada na Sé terá oito shows Índice
|