São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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CRÍTICA

Conservadorismo viceja dentro do armário

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Nas noites de quarta-feira, enquanto a Rede Globo monopoliza o futebol, as outras emissoras da TV aberta disputam a tapa o público que não suporta ficar duas horas assistindo a 22 homens correndo atrás de uma bola. É a noite "de gala" dos programas de auditório noturnos e é a noite em que se pode tomar a temperatura do que aqueles que fazem TV pensam sobre as identidades sexuais.
Sim, porque, enquanto o futebol é considerado um programa masculino por excelência, aqueles que não têm o futebol se esforçam para capturar as mulheres. Uma espécie de divisão se impõe: aos homens heterossexuais, o esporte (e a encenação do mundo competitivo) e a boa vida (álcool, bunda, safadeza); a todas as outras possibilidades de gênero e sexualidade, fofoca, auto-ajuda e irrelevância em vários formatos.
Um dos programas de auditório que mais, digamos, se efeminam para atrair esse público alérgico ao futebol é o "Boa Noite Brasil", de Gilberto Barros. De um ordinário programa pachorrento, de atrações de segundo time e quadros de produção mínima, às quartas-feiras o programa se assanha todo. É uma noite de moda e conselhos para mulheres no programa do Leão -por alguma razão bastante obscura, o rotundo apresentador tem esse apelido. O clímax são as "Alfinetadas", do estilista de noivas Ronaldo Esper, em que ambos, apresentador e costureiro, destilam veneno sobre o estilo das celebridades.
Como comadres à janela nas casas do interior, os olhares são de pura inveja -a beleza, o glamour, a elegância de mulheres famosas são demolidos em poucas palavras. A fama do estilista, chamado de "embaixador do bom gosto" por Barros, é de implacável em seus julgamentos, mas, em vez de rigorosos, seus comentários estão no terreno do puro despeito. E o apresentador, ansioso como a dona-de-casa que inveja o poder de atração das mulheres famosas e ricas, faz coro ao azedume do estilista.
Árbitros da feminilidade, Barros e Esper, nas entrelinhas, fazem um jogo de muxoxos e desprezo, em que o feminino aparece como algo precioso demais para ser exercido por mulheres. Não estão sozinhos nisso: a idéia de que as mulheres reais não "merecem" a feminilidade é uma noção clássica do pensamento homossexual mais conservador e machista, que viceja sobretudo dentro dos armários.
Na contramão das discussões mais avançadas sobre a diversidade sexual, a TV trabalha quase que sempre no registro mais tacanho das identidades. Homem gosta de safadeza, mulher tem que se preocupar em se manter bonita e em conservar seu homem, e gays, bem, estes têm que se esconder -ou se sujeitar à gozação. Por essas e outras é que a parada de hoje continuará por muito tempo a ser programa obrigatório.

@: biabramo.tv@uol.com.br


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