São Paulo, sábado, 13 de junho de 1998

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CINEMA
Filme de Walter Salles deve atingir hoje essa marca de público, com 36 salas, durante a 11ª semana de exibição
1 milhão passa por "Central do Brasil'

FERNANDO OLIVA
da Redação

As catracas de "Central do Brasil" devem ver hoje a passagem do espectador número 1 milhão. O filme de Walter Salles comemora o sucesso de público ao entrar na 11ª semana de exibição.
Na terça-feira, dia 9, última contagem oficial, batia os 984 mil espectadores, segundo Maurício Ramos, diretor-geral da VideoFilmes, a produtora de Salles.
Como vem fazendo cerca de 3.500 pessoas por dia, sendo 7.000 nos sábados, domingos e feriados, o grande dia deve ser hoje.
Quando estreou, no dia 3 de abril, podia ser visto em 36 salas de cinema espalhadas pelo país. Atingiu o pico de 80 salas, mas há duas semanas voltou ao número inicial, em que permanece.
"Carlota Joaquina", de Carla Camurati, foi visto por cerca de 1,2 milhão de pessoas, de acordo com sua produtora. "O Quatrilho", de Fábio Barreto, teve 1,1 milhão de espectadores, de acordo com o consórcio Severiano Ribeiro, e "Tieta", de Cacá Diegues, chegou aos 600 mil.
Segundo Salles, "Central" teve custo de US$ 2,9 milhões.
Leia abaixo entrevista concedida à Folha de Walter Salles, por fax, dos EUA, onde está telecinando seu quarto longa, "O Primeiro Dia". O filme é um episódio da série "2000 Vu Par" (2000 Visto Por), da TV franco-germânica Arte, projeto internacional sobre a virada do milênio.

Folha - Em que medida o sucesso de público é uma preocupação sua? Durante o processo de filmagem, você pensava em quais cenas, diálogos ou registros agradariam ou causariam estranhamento ao público brasileiro?
Walter Salles -
Em primeiro lugar, sucesso de público não é tudo. Sou um admirador de "Limite", de Mario Peixoto. O fato de "Limite" ter sido pouco visto não torna o filme menos relevante.
Durante todo o processo de preparação só tínhamos uma certeza: a de que estávamos na contramão de uma certa tendência do início dos 90, aquela representada por Tarantino, Robert Rodrigues.
No sentido contrário, portanto, de filmes que fizeram sucesso comercial a partir de uma utilização acrítica e esperta da violência. Como Fernanda Montenegro disse mais de uma vez, "Central do Brasil" foi feito com honestidade.
Sem cálculo, com integridade de propósito. E, de alguma forma, a maneira com que um filme é feito passa para a película, chega ao público -que é muito mais inteligente e perceptivo do que muita gente pensa.
Folha - Em algum momento do percurso você achou que o filme poderia ter tal sucesso?
Salles -
Não, por várias razões. Antes de "Central do Brasil" ser filmado, cansei de ouvir que o público brasileiro não queria ver sua própria imagem no cinema, como se aquela refletida pela televisão fosse suficiente, representativa ou plural. Bem, foi exatamente o oposto que acabou acontecendo. O sucesso de público se deu justamente por causa do boca-a-boca.
Folha - O brasileiro se reconhece nas imagens do cinema nacional?
Salles -
Como não se reconhecer em "Vidas Secas" ou "Memórias do Cárcere", "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "São Paulo S.A." ou "Bye Bye Brasil", para citar apenas alguns filmes? Eles permaneceram porque dizem melhor quem nós somos do que 30 anos de mediocracia televisiva. Já dizia o velho Godard: a TV fabrica o esquecimento. Já o cinema, quando traduz o seu tempo em filmes como esses, adquire um poder de permanência que justifica a sua própria existência.
Folha - Você acha que o sucesso de "Central" sinaliza um reconhecimento definitivo do brasileiro, o fim do preconceito contra o cinema nacional?
Salles -
Olha, nós recebemos mais de mil cartas ou e-mails desde o lançamento. Essas cartas são quase sempre comoventes e sobretudo consistentes, fazem uma leitura do filme mais densa e vertical do que alguns artigos publicados na imprensa.
Pois bem: ninguém escreveu dizendo que "Central do Brasil" acabou com o preconceito que se tinha contra o cinema brasileiro. Pelo contrário, as pessoas falam de reencontro com o cinema brasileiro.
Se ainda existe algum preconceito, ele não está localizado no público. Repare no estado da exibição hoje no Brasil. Existiam 5.000 salas nos anos 70, menos de mil sobreviveram ao desgoverno Collor. Dessas, apenas 700 têm condições razoáveis de som e imagem.
Quando "Central do Brasil" foi lançado, metade dessas salas estavam com "Titanic". Na semana seguinte, mais 250 começaram a exibir "O Homem da Máscara de Ferro" -80% das salas brasileiras estavam ocupadas por dois filmes americanos. Em resumo: sem nenhum maniqueísmo, é mais difícil conseguir salas para exibição de um filme brasileiro do que trazer o público para vê-lo.
Se não houver regulamentação, não haverá diversidade ou pluralidade temática no futuro.
Folha - Sem o sucesso em Sundance e, principalmente, em Berlim, o sr. acha que "Central" teria a mesma repercussão aqui no Brasil? Por que a chancela de festivais estrangeiros ainda é tão relevante?
Salles -
A simples chancela de um festival não garante o sucesso de um filme nem no Brasil nem em outras partes do mundo. "As Melhores Intenções", de Billie August, ganhou a Palma de Ouro e só teve 25 mil espectadores em Paris. Já "Hana-Bi" venceu o Festival de Veneza, que é muito menos exposto à mídia francesa, e teve 300 mil espectadores em Paris, um recorde para um filme de Kitano.
Por que a diferença? Porque o filme de Kitano encontrou uma ressonância que o manteve em cartaz.
Folha - As diferenças estéticas em relação ao seus longas anteriores são nítidas. Como aconteceu essa mudança de registro, que resultou em "Central do Brasil"?
Salles -
Sim, há um evidente processo de aproximação, uma atração crescente por temas intrinsecamente brasileiros. Simplificando a questão, é como se eu viesse de uma terra estrangeira para a terra brasileira. Mas, tematicamente, continuo interessado pelas mesmas coisas que me levaram a escolher esta profissão há dez anos: a questão da identidade, as fronteiras geográficas ou psicológicas, as diversas formas de exílio.
Em "Central do Brasil", o ponto de vista ganha um tom menos crepuscular. A outra mudança perceptível é que em "Terra Estrangeira" os personagens são sujeitos da ação, enquanto que em "Central do Brasil" há a clara sugestão que a ação é necessária, e que ela traz consigo uma possibilidade libertária.
Na verdade, "Terra" e "Central" são complementares, ambos têm raiz documental e falam de momentos específicos do país. "Terra" está inserido num período caótico da vida brasileira, as pessoas haviam perdido a possibilidade de decidir sobre o presente e o futuro, a tônica era a apatia, a desorientação, a negação da identidade. Em "Central do Brasil", a mudança é evidente - a união entre semelhantes, a vontade dos personagens são geradores de transformação. No final do filme, Dora se liberta do seu cinismo inicial, de sua vida mesquinha e apequenada, pega a estrada, permite-se uma segunda chance. Josué também reencontra parte da sua família porque exerce o seu desejo até o fim.
Finalmente, de um ponto de vista puramente formal, estou hoje basicamente preocupado em fazer com que a câmera esteja a serviço dos personagens e da história.
Folha - Você acredita no talento nato dos brasileiros para atuar. A própria escolha do Vinícius de Oliveira, apesar das centenas de testes, foi intuitiva, quase casual. Na sua opinião, de onde viria essa capacidade nata?
Salles -
Gosto cada vez mais dos filmes de Kiarostami, do seu trabalho com não-atores. Por outro lado, sempre me lembro que uma das lições fundamentais do cinema novo é de que é necessário colocar o rosto brasileiro na tela.
Com Sérgio Machado, assistente de direção e de casting de "Central", partimos à procura de não-atores ou de atores pouco conhecidos. E em todos os lugares aonde íamos surgiam pessoas com uma habilidade incomum, uma intuição incontestável para o cinema, que eram surpreendentes. Vinham com necessidade de serem ouvidas, evidenciando o enorme não-dito que existe no Brasil.
Muitas pessoas que nos escreveram disseram que se emocionaram mais com a segunda leva de cartas que são ditadas para Dora, no Nordeste, do que com o final do filme. Emocionaram-se com esses rostos brasileiros, que não encontram geralmente representação em outro lugar.
Folha - Vinícius de Oliveira deve voltar em algum filme futuro?
Salles -
Vinícius é, como Fernanda Montenegro o descreve, um pequeno guerreiro. Estava à procura de um menino que soubesse o que era a luta pela sobrevivência, mas que não tivesse perdido a inocência neste processo. Ele é extremamente talentoso, sério e sólido. Espero que ele não perca nenhuma dessas qualidades.
A produtora lhe garante o pagamento dos estudos até a universidade, e estamos sempre em contato. Ele já está trabalhando na TV educacional Futura.
Folha - Como você explica o fato de ele ter cruzado seu caminho? Foi apenas sorte?
Salles -
Talvez sorte ou intuição. Mas, por outro lado, se você não procura com rigor e seriedade, você não acha. Na época, mais de 1.500 testes já haviam sido feitos e eu não estava satisfeito, continuava à procura de Josué. Se tivéssemos parado no meio do caminho, não teríamos encontrado Vinícius - e vice-versa.
Folha - Você se deprime com a possibilidade de perder contato com as pessoas que atravessam seu caminho? Escalar Socorro Nobre na primeira cena de "Central" é uma tentativa de evitar isso?
Salles -
Sou um admirador de diretores que trabalham em família, como Cassavetes ou Truffaut. Gosto desses vasos comunicantes e gosto também da experiência do documentário irrigando a ficção. E, inevitavelmente, vou aprendendo com as pessoas que encontro no caminho, nessa busca, e me apego a elas. Isso aconteceu com pessoas tão importantes e diferentes quanto Frans Krajcberg, Socorro Nobre e Vinícius de Oliveira. O cinema é uma forma de aprendizado constante, e eu ainda tenho muito a aprender.



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