São Paulo, sexta-feira, 13 de julho de 2001

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CINEMA

O ator preferido do cineasta fala à Folha sobre seu novo filme, que estréia em novembro no país

Léaud sobrevive a Truffaut

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Com "Le Pornographe" (O Pornógrafo) -prêmio da crítica internacional em Cannes, que tem estréia prevista para outubro na Europa e novembro no Brasil-, o ator Jean-Pierre Léaud, 57, reergue uma carreira mítica.
Léaud debutou no cinema aos 14 anos, como o garoto Antoine Doinel, em "Os Incompreendidos", cuja adolescência e idade adulta seriam acompanhadas em "Beijos Proibidos", "Domicílio Conjugal" e "O Amor em Fuga", todos com referências à vida de François Truffaut (1932-1984), cineasta que os realizou.
O ator marca também a filmografia de Godard ("A Chinesa"), Bertolucci ("O Último Tango em Paris") e Pasolini ("Pocilga").
À morte prematura de Truffaut, seu tutor no cinema e na vida, atribui-se o inferno particular em que Léaud mergulhou. Viu o declínio do entusiasmo e da carreira. O prestígio da segunda ele retoma agora, como intérprete do papel-título no filme do canadense Bertrand Bonello, 32.
Em entrevista à Folha, de Paris, Léaud falou sobre o novo personagem -um cineasta pornô em busca de reconquistar o filho e a decência-, mas esquivou-se de abordar a relação com François Truffaut.

Folha - O que o atraiu no personagem Jacques, o pornógrafo?
Jean-Pierre Léaud -
Nele havia a possibilidade de exprimir um sofrimento -o de um homem confrontado com a tentativa de manter sua dignidade, a recusa em ser vulgar, fazendo filmes pornográficos. Foi o que me interessou. E exigiu de mim grande precisão ao interpretar. A pornografia é quando nos calamos e mostramos os órgãos sexuais, algo sem interesse algum. Para contradizê-la, procurei encontrar dignidade, profundidade e sofrimento na expressão de palavras muito cruas.

Folha - A "Cahiers du Cinéma" diz que o sr., além de seu corpo, carrega boa parte da história do cinema. É um peso ou um prazer?
Léaud -
Não me sinto carregando nada, mas trago um sentimento de prazer, uma espécie de força moral por ter trabalhado em tantos bons filmes. Tento comunicar esse sentimento com o máximo de modéstia, embora ele se perceba enquanto trabalho.

Folha - Por isso Bonello diz que filmá-lo é também assistir ao sr. fazer o seu próprio filme?
Léaud -
Minha maneira de trabalhar é muito particular. Quando decido fazer um filme, procuro decorar o texto. Depois, me ponho sozinho num canto e o repito para, no momento em que entrar em cena, achar o tom exato. Há cineastas com quem tive uma proximidade maior, porque eles mesmos estiveram associados à história do cinema. Não foi assim com Bonello, embora isso não contrarie o fato de que ele possa fazer um filme muito bom. E fez.

Folha - O sr. se recorda do filme que fez com Glauber Rocha em 70?
Léaud -
Sim, "O Leão de Sete Cabeças". Glauber era um amigo. Ele passou a ser muito associado à nouvelle vague, sobretudo por "Terra em Transe", que considero o seu mais belo filme.

Folha - O sr. acha que é possível haver na França outro movimento da importância da nouvelle vague?
Léaud -
Não. A nouvelle vague se inscreve na história do cinema como um movimento revolucionário do século passado. Hoje há pessoas que têm nela um ponto de referência para avançar. O cinema mudará sua técnica e tudo o mais que queiramos, mas, para os cineastas, Truffaut e Godard serão sempre uma referência.

Folha - O cinema continua a lhe interessar, apesar das mudanças?
Léaud -
Sim. Ele continua me interessando, até no cerne de suas mudanças. Eu também mudo.

Folha - Na literatura e na música, quais são seus autores favoritos?
Léaud -
Não escuto música. Vivo no silêncio total. A literatura que me interessa é sobre a psicanálise. Acho, como Lacan, que o inconsciente é construído como uma linguagem. Cada um tenta dizer seu texto a partir dessa linguagem do inconsciente. De tempos em tempos, escuto um pouco de música e tenho tanto mais prazer em ouvi-la por não ser um hábito. Tenho interesse em ouvir algo que Glenn Gould levou 25 anos para tocar. Traduz uma busca tão profunda, que se pode dizer que chegou ao pé da letra. Assim como, quando a linguagem vai ao pé da letra, é por meio de um verdadeiro ator, já que ele se remete à linguagem do inconsciente.

Folha - Truffaut faz falta como cineasta, como amigo ou como pai?
Léaud -
Essa é uma pergunta brutal. A ausência de Truffaut é espantosa não apenas para mim, mas para todo o cinema internacional. Ele era um dos melhores cineastas do mundo e teve sua vida interrompida em plena criatividade. A mim, certamente ele faz falta como amigo. Mas imagino que outros também sintam falta de seus filmes.

Folha - Há chances de o sr. voltar a filmar com Godard?
Léaud -
Não sei. Godard é um cineasta muito misterioso, e seus filmes têm cada vez menos atores.



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