São Paulo, sexta-feira, 13 de julho de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O guarda florestal e um caso de sodomia

Costumava acontecer com frequência. Uma complicação qualquer na vida institucional, um pronunciamento militar, tanques nas ruas, censura no rádio e na imprensa -e pronto: lá vinha um golpe de Estado. Não havia muitos tiros, mas prisões e bordoadas da polícia em cima daqueles que ousavam reclamar.
Mais pela faixa etária do que pelas convicções ideológicas, ele presenciara alguns desses golpes e, em todos, de uma forma ou outra, envolvera-se ou fora envolvido. Era jornalista e estava sempre do lado que perdia. Além de perder a parada, perdia também o emprego, mas sobrevivia até o golpe seguinte.
Em 1964, a situação foi mais complicada. Na manhã do golpe, tivera a casa revistada e depredada por uma escolta militar. Com alguma sorte e muito azar, conseguiu escafeder-se -foi a sorte-, mas caiu num aparelho subversivo que dava relativa proteção aos humilhados e ofendidos -o que foi o azar.
Passou duas semanas num quarto fechado, comendo miseravelmente um prato de macarrão à bolonhesa no almoço e outro no jantar. Sua solidão só não era total porque tinha um rádio e um telefone. No rádio, ouvia notícias assustadoras, gente presa, todos os amigos em cana. Os comunicados oficiais sempre terminavam com um adendo: ""Está iminente a prisão do jornalista Fulano de Tal". O Fulano de Tal era ele.
Quanto ao telefone, não podia receber nenhum chamado nem podia ligar para sua família. Só não era uma inutilidade porque tinha uma namorada, um caso duplamente clandestino, pois ele era casado e ela também -por coincidência, com um major da Artilharia da Costa, chamado Evandro.
Após uma semana de jejum e abstinência sexual (a alimentar era interrompida pelo citado macarrão à bolonhesa), ele estava subindo pelas paredes. Ligou para a indigitada e marcaram um encontro de madrugada, ela o apanharia de carro num lugar ermo, o marido estaria de serviço num dos fortes da baía.
Ele despistou o pessoal que o protegia e foi se encontrar, o sol nem havia nascido, num terreno baldio lá para as bandas da Barra da Tijuca, que naquele tempo era em si mesma um terreno baldio e ermo.
A mulher chegou a bordo de um Gordini grafite, um dos carros da moda. Rumaram pela estrada das Canoas, tomaram uns atalhos e foram parar no parque da Cidade quando o dia mal amanhecia.
Conversa vai, conversa vem, chegaram aos finalmentes, mas o carro era pequeno, não dava muito espaço para o desejo, que era insustentável. Como tudo estava deserto, as estrelas ainda tremulando no céu, que começava a clarear, decidiram sair do carro. De capô baixo, o Gordini era quase um sofá.
Fizeram um papai-e-mamãe aflito, quase desesperado. Descansaram um pouco, e, no segundo assalto, ela cedeu a um antigo desejo dele. Afinal, era um herói procurado pelo Exército inteiro, merecia o prêmio havia muito desejado. O capô baixo oferecia altura e sustentação suficientes.
Foi um delírio. No melhor da festa, ele sentiu a mão pesada de um homem em seu ombro direito. Era um guarda florestal, que tomava conta daquele trecho do parque da Cidade.
A mulher -muitos anos depois, ele nem sabe como a coisa se passou- conseguiu pular sobre o capô e se proteger do outro lado do carro. Ele não. Em pé, as calças arriadas nos tornozelos, nem fugir podia, pois o guarda estava armado e tinha a mão poderosa da lei e dos bons costumes. Intimou-o a ir, em companhia da mulher, à guarita onde ficava o posto policial do parque.
Após complicada negociação, ele ofereceu o que tinha no bolso, prometeu mais, prometeu tudo, desde que o guarda liberasse a ambos. Seria um vexame um herói perseguido pelas Forças Armadas -que não conseguiam prendê-lo em combate leal- sendo detido por um guarda florestal em abominável delito. E, ainda por cima, em cima da mulher de um major da Artilharia da Costa!
Bom homem esse guarda florestal. Diante das lágrimas da mulher e das duas notas de mil cruzeiros que o homem lhe oferecia, ele estava balançando, disposto a dar o caso como encerrado. Houve um momento em que afrouxou, penalizado pela mulher e incentivado pelo suborno do homem.
Mas sua consciência deu um grito. ""Não, não posso aceitar este dinheiro", disse ele. E explicou: ""Se fosse outra coisa, eu até esqueceria. Mas o senhor estava fazendo uma coisa feia com a moça. Isso não se faz, é contra a natureza, e eu sou um guarda florestal... Vamos descendo... Lá embaixo o senhor se explica ao oficial...".
Chegaram à guarita. O oficial não era oficial, era um sargento da Polícia Militar. Estava ouvindo o rádio, os primeiros boletins do dia. O locutor terminava a lista dos presos com a advertência: "Espera-se para as próximas horas a prisão do jornalista Fulano de Tal".
Bem distante dali, a mãe do jornalista Fulano de Tal rezava diante do oratório, pedindo que o filho, se tivesse de ser preso, que o fosse reagindo, tombando com honra na luta pelos seus ideais.



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