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CARLOS HEITOR CONY
O guarda florestal e um caso de sodomia
Costumava acontecer com
frequência. Uma complicação qualquer na vida institucional, um pronunciamento militar,
tanques nas ruas, censura no rádio e na imprensa -e pronto: lá
vinha um golpe de Estado. Não
havia muitos tiros, mas prisões e
bordoadas da polícia em cima
daqueles que ousavam reclamar.
Mais pela faixa etária do que
pelas convicções ideológicas, ele
presenciara alguns desses golpes
e, em todos, de uma forma ou outra, envolvera-se ou fora envolvido. Era jornalista e estava sempre
do lado que perdia. Além de perder a parada, perdia também o
emprego, mas sobrevivia até o
golpe seguinte.
Em 1964, a situação foi mais
complicada. Na manhã do golpe,
tivera a casa revistada e depredada por uma escolta militar. Com
alguma sorte e muito azar, conseguiu escafeder-se -foi a sorte-,
mas caiu num aparelho subversivo que dava relativa proteção aos
humilhados e ofendidos -o que
foi o azar.
Passou duas semanas num
quarto fechado, comendo miseravelmente um prato de macarrão
à bolonhesa no almoço e outro no
jantar. Sua solidão só não era total porque tinha um rádio e um
telefone. No rádio, ouvia notícias
assustadoras, gente presa, todos
os amigos em cana. Os comunicados oficiais sempre terminavam
com um adendo: ""Está iminente
a prisão do jornalista Fulano de
Tal". O Fulano de Tal era ele.
Quanto ao telefone, não podia
receber nenhum chamado nem
podia ligar para sua família. Só
não era uma inutilidade porque
tinha uma namorada, um caso
duplamente clandestino, pois ele
era casado e ela também -por
coincidência, com um major da
Artilharia da Costa, chamado
Evandro.
Após uma semana de jejum e
abstinência sexual (a alimentar
era interrompida pelo citado macarrão à bolonhesa), ele estava
subindo pelas paredes. Ligou para a indigitada e marcaram um
encontro de madrugada, ela o
apanharia de carro num lugar ermo, o marido estaria de serviço
num dos fortes da baía.
Ele despistou o pessoal que o
protegia e foi se encontrar, o sol
nem havia nascido, num terreno
baldio lá para as bandas da Barra
da Tijuca, que naquele tempo era
em si mesma um terreno baldio e
ermo.
A mulher chegou a bordo de um
Gordini grafite, um dos carros da
moda. Rumaram pela estrada
das Canoas, tomaram uns atalhos e foram parar no parque da
Cidade quando o dia mal amanhecia.
Conversa vai, conversa vem,
chegaram aos finalmentes, mas o
carro era pequeno, não dava
muito espaço para o desejo, que
era insustentável. Como tudo estava deserto, as estrelas ainda tremulando no céu, que começava a
clarear, decidiram sair do carro.
De capô baixo, o Gordini era quase um sofá.
Fizeram um papai-e-mamãe
aflito, quase desesperado. Descansaram um pouco, e, no segundo assalto, ela cedeu a um antigo
desejo dele. Afinal, era um herói
procurado pelo Exército inteiro,
merecia o prêmio havia muito desejado. O capô baixo oferecia altura e sustentação suficientes.
Foi um delírio. No melhor da
festa, ele sentiu a mão pesada de
um homem em seu ombro direito.
Era um guarda florestal, que tomava conta daquele trecho do
parque da Cidade.
A mulher -muitos anos depois, ele nem sabe como a coisa se
passou- conseguiu pular sobre o
capô e se proteger do outro lado
do carro. Ele não. Em pé, as calças
arriadas nos tornozelos, nem fugir podia, pois o guarda estava armado e tinha a mão poderosa da
lei e dos bons costumes. Intimou-o a ir, em companhia da mulher,
à guarita onde ficava o posto policial do parque.
Após complicada negociação,
ele ofereceu o que tinha no bolso,
prometeu mais, prometeu tudo,
desde que o guarda liberasse a
ambos. Seria um vexame um herói perseguido pelas Forças Armadas -que não conseguiam
prendê-lo em combate leal- sendo detido por um guarda florestal
em abominável delito. E, ainda
por cima, em cima da mulher de
um major da Artilharia da Costa!
Bom homem esse guarda florestal. Diante das lágrimas da mulher e das duas notas de mil cruzeiros que o homem lhe oferecia,
ele estava balançando, disposto a
dar o caso como encerrado. Houve um momento em que afrouxou, penalizado pela mulher e incentivado pelo suborno do homem.
Mas sua consciência deu um
grito. ""Não, não posso aceitar este
dinheiro", disse ele. E explicou:
""Se fosse outra coisa, eu até esqueceria. Mas o senhor estava fazendo uma coisa feia com a moça.
Isso não se faz, é contra a natureza, e eu sou um guarda florestal...
Vamos descendo... Lá embaixo o
senhor se explica ao oficial...".
Chegaram à guarita. O oficial
não era oficial, era um sargento
da Polícia Militar. Estava ouvindo o rádio, os primeiros boletins
do dia. O locutor terminava a lista dos presos com a advertência:
"Espera-se para as próximas horas a prisão do jornalista Fulano
de Tal".
Bem distante dali, a mãe do jornalista Fulano de Tal rezava
diante do oratório, pedindo que o
filho, se tivesse de ser preso, que o
fosse reagindo, tombando com
honra na luta pelos seus ideais.
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