São Paulo, quarta-feira, 13 de julho de 2005

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TEATRO

Abertura para o capitalismo e influência norte-americana colocam em xeque tradição secular de encenadores em Moscou

Crise de identidade abala cenário russo

VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

Nem tudo são flores no teatro russo, onde elas colorem os espaços públicos durante o verão e ramalhetes chegam aos atores ao final das apresentações. Flores levadas por um público que, quando gosta, aplaude de forma cadenciada; quando não, levanta-se em cena aberta, dá as costas para o palco e vai embora sem culpa.
Está em crise a secular relação palco-platéia no país de Stanislavski (1863-1938), cujo método de ator tornou-se paradigma. Não se trata de anúncio da enésima crise do teatro, morre-não-morre, mas exposição de incômoda fratura nestes anos 2000 de ostensiva abertura para o capitalismo.
Concomitante às dezenas de outdoors que tomam quarteirões inteiros, a Moscou com cerca de 200 salas virou alvo dos musicais norte-americanos. Está em cartaz "Cats", que chegou depois de "Chicago", malsucedida temporada de dois anos atrás.
Esse processo de globalização alinharia a cena atual a um gosto médio que incomoda. "Vivemos tempos difíceis de tentações. Primeiro, houve a construção do socialismo. Agora, do capitalismo. Surgiu um novo espectador, que não entende o teatro feito de verdade. Encara-o como se fosse uma moda e está pronto a pagar muito porque trabalha em grandes escritórios e não se importa se o que assiste é vulgar", diz o diretor Valery Fokin, responsável pelo Centro Meyerhold de Teatro.
Um luxo essa crise da tradição, se comparada a pouco mais de 60 anos do moderno teatro brasileiro. Em 2006, serão completados dois séculos e meio da primeira ajuda oficial às artes cênicas na Rússia, fomento perpetuado ao longo da história.
"O teatro de repertório recebe ajuda estatal, mas temos muitos "teatros mortos" que também recebem. O público vai a esse teatro morto, oferece flores, finge que o teatro está vivo", diz Fokin.
Segundo o crítico e professor da Escola de Arte Dramática de Moscou, Vidmantas Silyunas, essa abertura de janela para o mundo trouxe "perigos". "Muitos diretores começaram a ir a festivais internacionais e a trabalhar não para a sua platéia, mas para a estrangeira", diz Silyunas. "São espetáculos que poderiam ser assinados por um diretor de qualquer país, menos por um russo", completa.
A crítica Marina Zayonts discorda: "Para muitos diretores, a queda da Cortina de Ferro serve justamente para conhecer linguagens inovadoras praticadas lá fora, como a apropriação do vídeo. O problema são alguns diretores recém-formados que apresentam esses mesmos procedimentos técnicos fáceis, acostumando o público a esses truques".
Para quem vê de fora, o público mantém-se rigoroso, apesar de tudo. "Ele não se deixa enganar", diz o inglês Declan Donnellan, diretor de "As Três Irmãs", de Tchecov, que passou pelo 6º Festival Internacional de Teatro Tchecov.
Integrante da comitiva brasileira no evento, que vai até o final do mês, o diretor Antônio Araújo, do grupo Teatro da Vertigem, tem o teatro contemporâneo russo em alta conta, desde que apresentou "O Livro de Jó" em Moscou, em 1998. Como Araújo, que é professor da USP (Universidade de São Paulo), a maioria dos encenadores daqui desenvolve projetos pedagógicos. Entre os principais, estão Yuri Lyubimov, Anatoli Vasiliev, Piotr Fomenko, Kama Ginkas, Lev Dodin e Fokin (1946).


Os jornalistas Valmir Santos e Mario Vitor Santos viajaram a convite do 6º Festival Internacional de Teatro Tchecov e da Funarte


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