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CONTARDO CALLIGARIS
As garrafas de Morandi
Aqueles que enxergam mais que a realidade podem perder o
trem da história
GIORGIO MORANDI (1890-1964) é um dos maiores pintores do século 20.
Que eu saiba, não há obras dele
nas coleções públicas brasileiras,
mas os paulistanos se lembram da
exposição que o Masp lhe consagrou
em 1997.
Morandi foi um excelente gravurista e pintou retratos e paisagens,
mas a maior (de longe) parte sua
produção é uma série infinita (e só
aparentemente repetitiva) de naturezas-mortas, que "representam"
(mas seria melhor dizer: revelam)
caixas, vasos e, sobretudo, garrafas.
Ele passeava por Bolonha (onde viveu a vida toda), procurando objetos, que acumulava e pintava no seu
quarto (um espaço exíguo, que lhe
servia também de ateliê).
As naturezas-mortas de Morandi
são ideais para entender o ensaio de
Martin Heidegger, "A Origem da
Obra de Arte". O filósofo alemão, comentando um quadro de Van Gogh
que representa um par de sapatos,
descobria a função da obra de arte
na sua capacidade de nos revelar a
presença dos objetos além (ou
aquém) de seu uso, que os torna, de
alguma forma, invisíveis.
Um exemplo: depois do enterro de
meu pai, fui para a sua casa, deserta.
No banheiro, ao lado da pia, estavam, lado a lado, um barbeador, uma
taça de zinco com um fundo de sabão sólido e um pincel, dilatado pelo
uso. Eram objetos quaisquer, invisíveis até então, mas, naquele momento, sua presença se tornou avassaladora: a suspensão definitiva de
seu uso fazia com que, para mim,
eles estivessem presentes no mundo
com uma densidade de história e de
significação tão insondável quanto
minha dor e minha lembrança.
Para Heidegger, a obra de arte
produziria este mesmo efeito, de
tornar o mundo "presente" aos nosso olhos. É difícil abordar nessa linha a pintura narrativa dos grandes
ciclos de afrescos da Renascença, a
arte sacra e por aí vai, sem contar a
arte não-figurativa. Mas, para entender a pintura de Morandi, Heidegger é perfeito; ou, como disse,
Morandi é perfeito para entender o
ensaio de Heidegger.
Até recentemente, a imagem do
pintor bolonhês era a de um eremita, que nunca casou, viveu com as irmãs, recluso em seu quartinho-ateliê, totalmente tomado pela tarefa
de enxergar e mostrar, no cotidiano,
o invisível. Como ele viveu uma boa
parte de sua vida durante o fascismo
e a guerra, acrescentava-se que seu
isolamento era uma recusa da feiúra
do mundo, uma atitude moral.
Um dos princípios éticos básicos,
enunciado por Kant, diz que os homens podem ser fins de uma ação,
mas nunca meios. Numa época de
horror, Morandi parecia ter dedicado a vida a estender esse princípio
até as coisas, transformando suas
humildes garrafas em fins: objetos
presentes e merecedores de nosso
olhar, independentes de seu uso
possível.
Ora, acabo de ler (saiu em 2004)
"Giorgio Morandi: The Art of Silence" (a arte do silêncio), de Janet
Abramowicz. Nessa excelente monografia, descobre-se que Morandi
foi muito ativo na promoção de sua
carreira (muito mais do que se imaginasse) e, sobretudo, que ele se envolveu seriamente com o fascismo.
Continuo gostando de Morandi.
Assim como continuei lendo Heidegger quando se soube que ele tinha sido francamente nazista. Mas é
curioso que ambos, Morandi e Heidegger, tenham feito escolhas políticas barbaramente erradas.
Virgínia Figueiredo, num bonito
artigo sobre a estética de Heidegger,
("Isto É um Cachimbo", em "Kriterion: Revista de Filosofia", vol. 46, nš
112, dezembro de 2005, ótima revista de filosofia publicada em Belo Horizonte), escreve em conclusão:
"Certamente, em Heidegger, há
uma espécie de glorificação e exaltação da arte, cuja contrapartida é um
inevitável desprezo pela realidade".
A observação é certeira. É como se
(sempre, aliás) o esforço para enxergar o invisível (que seja a própria
presença do mundo, o mistério de
seu e de nosso estar aqui, os labirintos de nossos desejos, tanto faz) corresse o risco de nos fazer perder o
trem da história ou de nos mandar
escolher o trem errado.
Inversamente, é fácil subir no
trem da história deixando de pensar.
Ou seja, é fácil viver na ação e na técnica sem enxergar garrafas, sapatos
e barbeadores.
Falando em trem, um conselho: se
você for para Bolonha, não deixe de
visitar o museu Morandi, onde é reconstruído o quarto do pintor, mas,
imperativamente, na viagem, passe
também pela estação de trem da cidade e medite um pouco diante da
lápide que lembra os 85 mortos de
uma bomba fascista, em 1980.
ccalligari@uol.com.br
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