São Paulo, domingo, 13 de julho de 2008

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FERREIRA GULLAR

Não basta ter razão para estar certo


A aplicação das leis, pelo benefício social, é quase sempre difícil e está sujeita a contestações

A NOVA lei -apelidada lei seca- que reprime com maior rigor o abuso de bebidas alcoólicas, com poucos dias de aplicação, já havia dado ótimos resultados. Em prontos-socorros, o atendimento de vítimas de acidentes de trânsito caiu numa semana entre 17 e 27%. Concomitantemente, a diligência da polícia fez com que dezenas de motoristas alcoolizados fossem impedidos de continuar dirigindo. Alguns -que a televisão mostrou- desceram dos carros tropeçando nas pernas, tão bêbados estavam. Naqueles poucos dias muitas vidas foram poupadas. Mas logo surgiram os defensores dos direitos individuais para condenar a nova lei, alegando que ela atenta contra a liberdade dos cidadãos.
Mal começou a polícia a agir e já um membro da promotoria de São Paulo declarava que o uso do bafômetro era um atentado aos direitos individuais, já que ninguém é obrigado a produzir provas contra si. A Associação de Hotéis e Empresas de Entretenimento entrou com uma ação contra a lei seca. Não sei em que vai dar isso mas, pelas decisões que costumam tomar nossos juízes, não duvido que se termine por suspender a aplicação da lei e os motoristas irresponsáveis continuem a pôr em risco a vida das pessoas.
O problema não é simples, pois, em muitos casos, se obedece estritamente à letra da lei, a autoridade fica impedida de agir. O juiz reconhece que a nova lei, criada com a melhor das intenções, contraria princípios básicos do direito ou o parágrafo tal da Constituição. Mas, segundo um amigo meu, que é jurista, o argumento que pretende impedir o uso do bafômetro não se sustenta, pois há hoje o entendimento de que negar-se ao teste é uma confissão de culpa. E parece que assim entende a polícia, ao impedir os que resistem a soprar o bafômetro de continuarem dirigindo.
A aplicação das leis é quase sempre difícil e sujeita a contestações.
As leis existem porque, sem elas, o convívio social seria impossível. Por isso mesmo, toda lei implica a redução do grau de liberdade dos indivíduos, uma vez que, se cada um pudesse fazer o que lhe desse na telha, atropelaria o direito do outro e, assim, chegaríamos ao caos ou à lei da selva, o mais forte impondo sua vontade. O difícil está, por isso mesmo, em alcançar a sintonia fina entre o bem geral da sociedade e o direito de cada indivíduo.
Não resta dúvida de que essa nova lei seca veio estragar o fim de semana de muita gente habituada a sair de noite para jantar com os amigos, tomar seus uísques e voltar para casa dirigindo o seu carro. E agora, como abrir mão de um hábito de dez, 20 anos? A opção seria ou não bebe ou corre o risco de ser levado em cana e ficar sem a carteira de motorista por um ano ou mais. Já os donos de restaurantes e hotéis, se bebem ou não, pouco importa: estão preocupados é com a queda na venda de bebidas alcoólicas. Pouco se lhes dá se o freguês, depois de pagar a conta, vai imprensar contra um poste uma família inteira. E certamente um bom advogado sempre encontrará um dispositivo legal que garanta o livre comércio de bebidas alcoólicas e algum juiz que suspenda a aplicação da lei seca.
Eu, que não entendo de leis, tendo a achar que o interesse geral -como a proteção da vida das pessoas- deve prevalecer sobre a aplicação estrita do dispositivo legal. Vou lhes dar um exemplo, que não tem nada a ver com bebidas alcoólicas nem perdas de vidas, mas que talvez sirva para amainar o ímpeto legalista dos juristas. Desculpem se o exemplo me envolve mas é que ele me parece bastante ilustrativo dessa escolha que às vezes temos de fazer entre a aplicação da lei e o interesse maior da sociedade.
Quando presidente da Funarte, caiu-me nas mãos um processo que, já julgado em última instância, autorizava a instituição a retomar as obras de arte popular que tinham sido cedidas, por um prazo, ao museu do Convento do Sino, de João Pessoa, na Paraíba. Conhecia o museu e vira lá as obras expostas. Tratava-se de uma coleção, adquirida pelo governo para uma exposição de arte popular brasileira na França e que deveria integrar o acervo do Museu do Folclore, da Funarte. Ao ler o processo, lembrei que este museu possuía mais de 5.000 obras guardadas no porão, sem expô-las, por falta de espaço mas, por força de lei, deveria retomar as obras que estavam expostas na Paraíba, para enfurná-las como as outras. Com a concordância do ministro, arquivou-se o processo e assinou-se uma cessão em comodato com o museu paraibano. Por direito, a Funarte deveria retomá-las mas isso não traria qualquer benefício à sociedade.


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