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TEATRO CRÍTICA
Atores celebram o teatro em "Da Gaivota"
NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba
Fernanda Montenegro anunciou
no fim da apresentação de "Da
Gaivota", de Anton Tchecov, sexta-feira em Curitiba, que aquela
era a estréia da peça. Não era. Para
quem viu o ensaio aberto, dias antes, é flagrante que a peça é obra
em progresso. Vai agora a Salvador, depois Rio e chega a São Paulo em setembro.
De uma apresentação a outra, dá
saltos. Atores revelam cenas, personagens ganham corpo. Na "estréia", num frio de quatro graus
no imenso teatro Guaíra, ninguém revelou mais, saltou mais do
que a jovem atriz Nina.
Fernanda Torres, como Nina,
diz depois de muito sofrer que o
que importa é perseverar -e, ao
contrário dos ensaios, não soa
moralista, pequenamente moralista. É grande, trágica.
A atriz ainda não tem o domínio
todo da cena, que é capital no espetáculo, mas a maior parte do
tempo está radiante. É aplaudida
em cena aberta ao variar emoção,
lágrimas que vêm e vão, com firmeza, perseverança. Fez crescer,
com sua interpretação, personagens que se aproximaram.
Fernanda Montenegro, na grande cena de sua Arkádina, com o
amante Trigorin, tem um domínio maior, mas também perde o
ritmo em um ou outro instante. É
a obra em progresso, mas a um
passo da plenitude. E assim acontece com quase todos.
Matheus Nachtergaele, como
Treplev, filho de Arkádina, agora
diz que ama Nina -e se acredita
inteiramente. Quem perde, de
modo inesperado, é o resignado
Sorin, irmão de Arkádina. Nelson
Dantas atua tão bem quanto nos
ensaios, mas não sobressai como
antes. Ainda assim, é o mais acabado intérprete tchecoviano.
Falta a Arkádina o prazer da
crueldade. Fernanda Montenegro,
a atriz que faz a atriz, como que
resiste à perfídia criada por Tchecov. Vai à boca de cena e sublinha,
"não me queiram mal", depois
de humilhar e repelir o filho.
Mas é uma interpretação majestosa. Sua Arkádina sabe como seduzir, encantar, fascinar -seja o
amante, seja o angustiado filho.
Chega a ser técnica, na sedução.
Fala o que seria uma meia verdade, sobre a "maravilha" literária
de Trigorin, e convence. Faz sentido, ganha sentido.
Arkádina esmaga a vontade do
amante, que queria trocá-la por
Nina, com uma interpretação. A
bem da verdade, também é sinceramente cruel ao menos uma vez,
ao dizer, sem emoção alguma, que
não leu nada do que o filho escreveu, por falta de tempo.
Mas o que faz a atriz desviar o
personagem tantas vezes para a
comicidade, a voz em falsete? Talvez sua própria história no palco
brasileiro, ela que é de uma geração contrária ao modelo das "divas", como Arkádina. Fernanda
Montenegro é, não tem como negar, diva. Talvez moderna,
não-romântica, mas diva. De todos os seus papéis recentes, este é
o que ela veste melhor.
Um belo de um desafio, depois
de cinco décadas de carreira. O coroamento da primeira-dama do
teatro (e do cinema, e da televisão). Mas falta o desejo da coroação, para Arkádina e a própria peça chegarem à plenitude -e estabelecer-se realmente o conflito
central, das atrizes.
Trigorin, o amante, escritor festejado, está muito bem, sinuoso
com todos, um cínico consigo
mesmo. Mas também ele, o intérprete Celso Frateschi, parece estar
distante de abraçar as proporções
do personagem, que chega a ser
trágico, não menos do que Nina,
em sua consciência do próprio talento -e fraquezas.
Pode-se dizer o mesmo, ainda,
de Nachtergaele. Em primeiro lugar, há pouco da agressividade demolidora, da certeza que se esperaria do personagem, ao menos
em parte de sua presença no palco.
Mas Treplev já encorpou -e não
é mais de um realismo psicológico, tão-somente, a atuação.
É tocante, no jovem escritor que
antes brigava por "novas formas", uma de suas falas finais:
"Escrever não é questão de formas novas ou formas velhas. É
deixar as palavras saírem livremente da alma". Mas falta distinguir mais, em Treplev, a consciência de Jó, papel anterior de Nachtergaele, ou de Hamlet.
Quem mais está alheio a esta
emocionante encenação, emocionante pela busca dos atores num
texto que é sobre teatro, é Antônio
Abujamra. Conta histórias de teatro como piadas -e são piadas,
mas não apenas piadas.
A mão consciente, mas carinhosa, da diretora Daniela Thomas
pode ser notada em toda parte.
Por exemplo, no estímulo aos atores com simples marcações. Trigorin de um lado do palco, na boca de cena, Nina do outro, ao fundo: a distância e os olhares de ambos gritam a paixão.
Outros: a boca de Arkádina resvala pela calça de Trigorin, enquanto ela o seduz, na ilusão de
submissão; a identificação do lago
da peça com a própria platéia, o
público; os poucos rompimentos
da quarta parede, em direção ao
público e ao lago, tratados com
afeição, reverência.
O cenário tem mínima interferência. Está ao fundo, distante,
pesado, com as suas formas modernistas, seus ângulos retos, seu
escuro de um século decaído -e
não o 19, mas o 20.
A tradução/adaptação não poderia ser mais singela, com as suas
rimas, suas palavras claras e a opção por não afetar classicismo. E
também, por que não, ao sublinhar o presente, do teatro da própria Daniela Thomas.
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