São Paulo, Sexta-feira, 13 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA - "ROMANCE"
"Matei meu corpo nas filmagens", diz Ducey

FÁTIMA GIGLIOTTI
da Reportagem Local


"Romance", a polêmica iniciativa da diretora francesa Catherine Breillat que colocou em um liquidificador cinematográfico arte e sexo explícito, mudou a vida da jovem atriz Caroline Ducey.
Por sugestão da diretora, Caroline até trocou seu sobrenome artístico, de Trousselard para Ducey. "O nome fui eu que escolhi, é um personagem de Balzac."
Mas de balzaquiana Caroline não tem nada. Com seus 23 anos, alguma experiência em teatro e dois pequenos papéis em modestos filmes franceses, foi a revelação do cinema do país em 98.
No papel de Marie, protagonizou cenas de sexo explícito, felação e sadomasoquismo incluídos, e ainda contracenou com Rocco Siffredi, astro maior do cinema pornográfico. Deu o que falar.
Depois de "Romance", Caroline atuou em "La Chambre Obscure", ainda inédito. De Paris, ela falou à Folha, por telefone, sobre o seu trabalho em "Romance", "um teste para os meus limites como atriz". Ela também disse que pensa em viver um ano em outro país. E coloca o Brasil entre as opções.

Folha - Qual foi sua primeira impressão ao ler o roteiro?
Caroline Ducey -
Até agora eu acredito que aceitei o papel porque senti que ele era para mim, e ainda não sei explicar por quê.
Catherine Breillat e eu tivemos apenas uma reunião. Do filme, eu só sabia que era um romance sobre uma garota que tinha problemas com o homem pelo qual estava apaixonada. Mas no teste me emocionei com Marie, minha personagem, e aceitei o papel.
Depois fui para o hotel, li o roteiro e achei horrível. Eu não esperava aquilo de maneira alguma, que houvesse sadomasoquismo, tanta destruição, e que o filme fosse escrito com tanta crueza. Liguei para o meu agente, e ele me disse: "É um filme de Catherine Breillat, ela escreve coisas de maneira crua, mas o que quer filmar são as emoções". Então eu decidi seguir minha primeira impressão.

Folha - E como você se preparou para essas cenas cruas?
Ducey -
As filmagens começaram em um mês e, durante esse tempo, eu não quis ler o roteiro, ele me assustava. Então coloquei na personagem só o que eu quis colocar, ou seja, eu criei uma nova história para ela. Havia muitas cenas que eu nem queria entender, eu as considerava simbolicamente, como as de sadomasoquismo.

Folha - Mas isso não criou conflito entre você e Catherine?
Ducey -
Não, porque ela está certa ao dizer que um filme de amor não deve se deter apenas na pornografia, mas que a pornografia é importante para trazer a liberdade da nudez.

Folha - Marie, sua personagem, diz no filme que não gosta de seu corpo. Como você se sente em relação ao seu corpo, totalmente exposto no filme?
Ducey -
Eu fui capaz de matar o meu corpo. Eu tive anorexia quando garota, não queria deixar de ser criança. Não sei o que aconteceu, eu apenas fiquei louca.
Por isso não foi difícil me desfazer do meu corpo. Eu aceitei que ele fosse mostrado e tive de fazer o medo ir embora.
De certa maneira, eu matei o meu corpo durante as filmagens, ele não significava nada para mim. Depois foi difícil, porque eu tive de encontrá-lo, fiquei louca outra vez. Já me recuperei, mas não terei uma experiência como essa de novo, pelo menos por enquanto.

Folha - Então as cenas de nudez foram seu maior desafio?
Ducey -
Eu tive problemas, mas porque tinha apenas 21 anos e precisei tomar decisões que iam mudar a minha vida. Esse foi o desafio, saber quais eram os limites do meu trabalho. Para mim, o importante, na vida, é o que você faz e, no cinema, é o que você é. Você é na frente da câmera, e representa na vida.
Entender as diferenças entre a realidade e a ficção foi um desafio. Eu só quis fazer um filme honesto, e compreendi que, se eu não me entregasse ao papel, eu não seria capaz de interpretar.

Folha - E as cenas de sexo explícito, tinham essa "entrega"?
Ducey -
Foi um conflito, porque eu faço uma cena de amor, com sexo explícito ou não, se ela tiver sentido. E pornografia não tem sentido, é apenas para fazer as pessoas se satisfazerem, e não para elas satisfazerem uma outra pessoa. Para mim, isso é destrutivo. Mas eu queria testar os meus limites -e realmente os testei.

Folha - Falando nisso, há três cenas de felação no filme. Só uma é de verdade. Por quê?
Ducey -
Eu fiz de verdade na primeira vez porque a diretora quis que eu fizesse, ela disse que era necessário -se era ou não, eu não sei. Depois de provar para mim mesma que eu era capaz, não fazia mais sentido repeti-la.

Folha - Isso não é contraditório, num filme que assume a pornografia explicitamente?
Ducey -
Não sei, para mim foi um teste. Eu acho legítimo tentar. Se há atores que são abertos para transar de verdade durante uma cena, eu sei agora que não sou, porque não há sentido nisso. Talvez, quando eu for mais velha, eu mude de idéia. Mas agora eu penso que o amor pode ser simulado; afinal, estamos falando de cinema. As pessoas transam fora das telas, mas cinema é ficção, não precisa ser real. Faz parte da mágica do cinema; ser for real, é um documentário. Não é ficção.

Folha - A pergunta inevitável: como foi com Rocco Siffredi?
Ducey -
Só descobri quem ele era horas antes da cena, e ele estava meio perdido também. Éramos apenas dois atores, mas foi uma crise. Eu quis sair do filme. Nesse momento, todas as contradições que eu tinha com a personagem explodiram, eu me senti feia. Mas percebi a tempo que, quando se quer construir alguma coisa, é preciso destruir outras, e a sequência com Rocco é um dos pontos altos do filme sobre isso.

Folha - Você disse que criou uma história para Marie, para interpretá-la à sua maneira.
Ducey -
O filme é uma história de amor. E, no final de tudo, o sentido pertence ao diretor. Eu não podia aceitar os personagens masculinos como eles são mostrados no filme, a serviço da libertação de Marie. Eles não são desenvolvidos, servem apenas a um ponto de vista feminino do filme. Mas eu tinha de ver Marie como alguém que acredita no amor mas não consegue se libertar para vivê-lo sem os jogos de poder.

Folha - Foi mais fácil filmar com uma diretora?
Ducey -
Sim, porque eu podia falar de sexo na mesma língua, trocar com ela. Mas acho que não é pelo fato de ela ser mulher, é uma questão de personalidade.

Folha - "Romance" termina com uma imagem virginal, da mãe com o filho. Por quê?
Ducey -
Catherine adora contradições; para ela a definição do feminino é a ambiguidade. Eu não sei se concordo com ela, mas a cena final é simbólica, como se acontecesse num pesadelo e a vida fosse uma farsa, tem uma certa ironia nisso. Eu não queria interpretar a cena final assim, mas fiz como Catherine quis; há uma morte simbólica, o filho é a continuidade da vida. Tudo passa.


Texto Anterior: Rádio: Igreja Universal terá outra emissora FM
Próximo Texto: Deus abençoe a canalhice feminina
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.