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GASTRONOMIA
À caça do gosto perdido
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Um dos leitores mais geniais
respondeu a um pedido de
sugestões e indicou a leitura de
um livro muito interessante. É do
psicólogo russo Luria e ajuda
muito na compreensão dos mecanismos da memória.
Foi publicado pela primeira vez
há uns 20 anos e tornou-se um
clássico em patologias da memória. Chama-se "A Mente e a Memória". É o estudo de caso de um
sujeito que se lembrava de absolutamente tudo que jamais lhe
acontecera, daqueles que acabam
num circo ou em shows de TV, repetindo páginas inteiras submetidas a ele na hora, de trás para a
frente, de frente para trás.
Foi uma das memórias mais extraordinárias de que já se teve notícia. Transformava sons em imagens visuais e não tinha uma linha
separando a visão da audição ou o
tato do paladar.
"Ele sente sons uniformes e finos e cores ásperas. Tonalidades
salgadas e cheiros brilhantes, claros ou cortantes." Todos os sentidos funcionando ao mesmo tempo, e o que caísse ali não era passível de se deletar. Ficava na caixa
de saída, ou na de entrada, até na
lixeira, mas com a associação
apropriada vinha à tona.
O distúrbio do homem seria o
sonho dos poetas, poetas que ele
não entendia por sua dificuldade
de abstração. Sua vida não deu
certo, um eterno barato, tudo o
que se busca nos paraísos artificiais ali, entretecido e confuso.
"Reconheço uma palavra não
apenas pelas imagens que ela evoca, mas por todo um complexo de
sentimentos que a imagem desperta. É difícil explicar, não é uma
questão de visão ou de audição,
mas uma espécie de sentido geral
que possuo. Geralmente experimento o gosto de uma palavra."
O gosto das palavras! O gosto da
palavra. Resolvia o que iria comer
em função do nome da comida,
do som. Achava uma bobagem
quando lhe diziam que maionese
era um molho gostoso. Como poderia ser? O "z" (conforme a pronúncia russa) arruinava o gosto
com seu som perfurante.
Mesmo em português, "maionese" é uma palavra engordurada, besunta os lábios. Um "molho
de ovo" já é mais seco, porque foi
evitado o "z" do azeite, azeite viscoso. "Óleo" tem menos gordura,
mas "oleoso" não escapa do colesterol.
O nosso sujeito lembrante foi
tomar um sorvete, e a vendedora
respondeu às suas perguntas com
voz grosseira. Bastou para que
visse cinzas e carvão saindo de sua
boca, numa associação feita com
bondes barulhentos. Desistiu do
sorvete.
Uma vida difícil e complicada. E
palavras gostosas.
Ah, mas nós que lidamos com
comida e público sabemos disso
intuitivamente. Passamos os dias
a elaborar menus que atenuem
com palavras o excesso de temperos ou excitem o apetite com
acompanhamentos cintilantes e
crocantes.
Como um exemplo, a "papoula". É dessas palavras que alimentam as fantasias, subjugam a imaginação. O estalar dos "p"s, os
"a"s claros, abertos e esticados,
seguros apenas pela gravidade soturna do "ou". Quiçá a associação
com o ópio proibido, ou os dois.
Não se intriguem, então, quando
o menu tiver papoula em excesso.
É sedução, não mais que sedução.
Quando S. (assim o nomearam)
ouvia música, sentia as notas na
língua e achava que modificavam
completamente o gosto da comida. Chamava os donos de restaurante à responsabilidade daquilo
que punham a tocar na hora da
refeição.
Um sofredor, como o homem-elefante. Diferente. Para decorar
um telefone, tinha que degustar
os números, sopesá-los, enrolá-los no palato, engoli-los, só assim
eram absorvidos realmente.
Cores de sons, sons de sabores,
gosto das cores, cheiros das texturas.
Que gosto teriam as coisas mais
estranhas, a vida permeada de sabores, além de canja de mãe, o
gosto da madrugada, gosto de leilão de antiguidade, de uma rosa
quase preta, de desfile de moda,
mercado de flores, cigarras alvoroçadas, festa no Leopolldo, pé de
jabuticaba, defesa de tese no departamento de filosofia da USP,
exposição de cachorros na Água
Branca, a quinta sinfonia de Mah-ler, operação espírita do Dr. Fritz,
baile funk no Palmeiras, missa do
padre Marcello, caneta Bic prata?
Desafio para todos nós, "os normais", à caça do gosto perdido.
E-mail: ninahort@uol.com.br
A Mente e a Memória - Um Pequeno
Livro sobre uma Vasta Memória. De:
A. R. Luria. Editora: Martins Fontes. R$
24,50. 162 págs..
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