São Paulo, quinta-feira, 13 de setembro de 2001

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GASTRONOMIA

À caça do gosto perdido

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos leitores mais geniais respondeu a um pedido de sugestões e indicou a leitura de um livro muito interessante. É do psicólogo russo Luria e ajuda muito na compreensão dos mecanismos da memória.
Foi publicado pela primeira vez há uns 20 anos e tornou-se um clássico em patologias da memória. Chama-se "A Mente e a Memória". É o estudo de caso de um sujeito que se lembrava de absolutamente tudo que jamais lhe acontecera, daqueles que acabam num circo ou em shows de TV, repetindo páginas inteiras submetidas a ele na hora, de trás para a frente, de frente para trás.
Foi uma das memórias mais extraordinárias de que já se teve notícia. Transformava sons em imagens visuais e não tinha uma linha separando a visão da audição ou o tato do paladar.
"Ele sente sons uniformes e finos e cores ásperas. Tonalidades salgadas e cheiros brilhantes, claros ou cortantes." Todos os sentidos funcionando ao mesmo tempo, e o que caísse ali não era passível de se deletar. Ficava na caixa de saída, ou na de entrada, até na lixeira, mas com a associação apropriada vinha à tona.
O distúrbio do homem seria o sonho dos poetas, poetas que ele não entendia por sua dificuldade de abstração. Sua vida não deu certo, um eterno barato, tudo o que se busca nos paraísos artificiais ali, entretecido e confuso.
"Reconheço uma palavra não apenas pelas imagens que ela evoca, mas por todo um complexo de sentimentos que a imagem desperta. É difícil explicar, não é uma questão de visão ou de audição, mas uma espécie de sentido geral que possuo. Geralmente experimento o gosto de uma palavra."
O gosto das palavras! O gosto da palavra. Resolvia o que iria comer em função do nome da comida, do som. Achava uma bobagem quando lhe diziam que maionese era um molho gostoso. Como poderia ser? O "z" (conforme a pronúncia russa) arruinava o gosto com seu som perfurante.
Mesmo em português, "maionese" é uma palavra engordurada, besunta os lábios. Um "molho de ovo" já é mais seco, porque foi evitado o "z" do azeite, azeite viscoso. "Óleo" tem menos gordura, mas "oleoso" não escapa do colesterol.
O nosso sujeito lembrante foi tomar um sorvete, e a vendedora respondeu às suas perguntas com voz grosseira. Bastou para que visse cinzas e carvão saindo de sua boca, numa associação feita com bondes barulhentos. Desistiu do sorvete.
Uma vida difícil e complicada. E palavras gostosas.
Ah, mas nós que lidamos com comida e público sabemos disso intuitivamente. Passamos os dias a elaborar menus que atenuem com palavras o excesso de temperos ou excitem o apetite com acompanhamentos cintilantes e crocantes.
Como um exemplo, a "papoula". É dessas palavras que alimentam as fantasias, subjugam a imaginação. O estalar dos "p"s, os "a"s claros, abertos e esticados, seguros apenas pela gravidade soturna do "ou". Quiçá a associação com o ópio proibido, ou os dois. Não se intriguem, então, quando o menu tiver papoula em excesso. É sedução, não mais que sedução.
Quando S. (assim o nomearam) ouvia música, sentia as notas na língua e achava que modificavam completamente o gosto da comida. Chamava os donos de restaurante à responsabilidade daquilo que punham a tocar na hora da refeição.
Um sofredor, como o homem-elefante. Diferente. Para decorar um telefone, tinha que degustar os números, sopesá-los, enrolá-los no palato, engoli-los, só assim eram absorvidos realmente.
Cores de sons, sons de sabores, gosto das cores, cheiros das texturas.
Que gosto teriam as coisas mais estranhas, a vida permeada de sabores, além de canja de mãe, o gosto da madrugada, gosto de leilão de antiguidade, de uma rosa quase preta, de desfile de moda, mercado de flores, cigarras alvoroçadas, festa no Leopolldo, pé de jabuticaba, defesa de tese no departamento de filosofia da USP, exposição de cachorros na Água Branca, a quinta sinfonia de Mah-ler, operação espírita do Dr. Fritz, baile funk no Palmeiras, missa do padre Marcello, caneta Bic prata?
Desafio para todos nós, "os normais", à caça do gosto perdido.

E-mail: ninahort@uol.com.br


A Mente e a Memória - Um Pequeno Livro sobre uma Vasta Memória. De: A. R. Luria. Editora: Martins Fontes. R$ 24,50. 162 págs..


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