São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Poetas românticos e sonhos complicados

Nos tempos românticos, as donzelas eram pálidas e os poetas gostavam delas e dos cemitérios. Aparentemente, uma coisa devia ter com a outra, pois as donzelas, além de pálidas, eram fracas de peito e de carne. Apesar de puras como os lírios do vale, não resistiam à menor cantada e, de duas, uma: antes que a família descobrisse que estavam grávidas, entravam para o convento ou ficavam tuberculosas, como a dama das Camélias e a Mimi Poisin, da ópera de Puccini.
Algumas preferiam o suicídio, como Ana Karenina, Ema Bovary e a madame Butterfly, do mesmíssimo Puccini, que tinha o seu forte em mulheres fracas do peito e da carne -como foi dito acima.
No Brasil, o romantismo foi curiosamente paradoxal -o que deve ser pleonasmo, pois todo paradoxo é curioso. Movimento importado, como as tesourinhas Sollingen, as máquinas Singer e os bondes da Light, o romantismo deu a volta por cima em nossas plagas, sobretudo em seus representantes mais categorizados. Absorveu a nossa paisagem, nossas palmeiras, nossos sabiás, nossas borboletas e até mesmo, num exagero que quase lhe foi fatal, os nossos índios e índias.
Contudo o veio principal do romantismo europeu continuou com suas pálidas donzelas e seus cemitérios igualmente pálidos -não sei se os cemitérios são pálidos, mas devem ser, os muros são pintados de branco e a maioria dos túmulos tem a palidez dos mármores.
Byron, de um lado, e Victor Hugo, de outro, foram os gigantes que fizeram a cabeça de todos os românticos, os bons, os ruins e os mais ou menos. Houve gente que levou donzelas (nem todas pálidas, algumas até que exuberantes) para fornicar nos cemitérios, em cima das campas, à Byron mesmo, embora seja difícil imaginar o poeta-lorde, com sua manca perna, trepando com alguém em situação tão desconfortável.
E havia os suicídios, à Werther. Não incluí Goethe na lista dos gigantes aí de cima porque, afinal, ele escreveria o ""Fausto" e mudaria de grau e de gênero. Os bons românticos morreriam cedo, e Goethe morreu bem velho. Mas, no Brasil, quem passava de certa idade tinha de ser clássico ou parnasiano. Álvares de Azevedo morreu com 20 anos e deixou-nos sua lira obviamente dos 20 anos. Casimiro de Abreu morreu com 21, chorando as saudades que tinha da aurora de sua vida que os anos não mais traziam, quando ele adormecia sorrindo e despertava a cantar.
Castro Alves foi embora aos 24 anos e, de todos os românticos, foi o mais viril, porque a verdade é que os seus colegas de movimento eram frouxos. Álvares de Azevedo morreu sem ter conhecido mulher e Casimiro de Abreu não era fanático. Fagundes Varela, outro romântico maior, não chegou aos 40, morreu aos 34. E o mais velho de todos, Gonçalves Dias, estava morre-não-morre aos 41 anos e o navio em que viajava ajudou-o a ir desta para melhor, naufragando na costa do Maranhão natal, sem que ouvisse os sabiás cantando nas palmeiras de lá.
Na Academia, há a Sala dos Poetas Românticos. Lá estão os bustos de Casimiro de Abreu, de Castro Alves, de Fagundes Varela, de Álvares de Azevedo e de Gonçalves Dias, sendo que este tem, além do busto, um pedaço da proa do ""Vile de Boulogne", o navio que o levou para o fundo das águas.
Os parnasianos não gostavam dos românticos, zombavam deles, mas foram pagos na mesma moeda porque os modernistas, de 22 em diante, também caíram em cima deles, e todos, parnasianos e românticos, saíram de moda. E, como quem bate leva, os modernistas também passaram de moda e somente alguns se habilitaram a ser eternos -até que as coisas novamente mudem, pois mudar é preciso, ainda que seja para pior.
Dito tudo o que disse, confesso que admiro os românticos, embora prefira mulheres sanguíneas e não aprecie os cemitérios. De todos os movimentos literários que tivemos -todos importados, é bom repetir-, o romantismo foi o que mais se adaptou à nossa gente e ao nosso cenário. O classicismo foi um absurdo geográfico e cultural, não fazia sentido imitar Virgílio ou Camões em terras de um mundo novo. O parnasianismo foi uma reação aos excessos do romantismo, mas também cometeu excessos, da mesma forma que os modernos, reagindo aos parnasianos, criaram o poema-piada, que nem é poema nem chega a ser piada. Tornaram-se modernosos, como os abajures art nouveau e as eletrolas pé de palito em pau-marfim.
Suspeito que esteja hoje com a cachorra, falando mal de tudo e de todos, mas é que estou me preparando para fazer uma palestra sobre o romantismo e tive um sonho complicado. Havia uma criança correndo atrás das borboletas de asas azuis e, no horizonte, boiando num rio, a copa de uma palmeira levava um homem e uma mulher que se amavam. Para piorar, em cima de outra palmeira cantava um bem-te-vi (não temos sabiás aqui na Lagoa) e de uma casa distante vinha a voz do Agnaldo Timóteo berrando com seu vozeirão o ""Tão longe, de mim distante", do Carlos Gomes.
Tamanho contexto tinha de resultar num péssimo texto. Daí que me prometi melhores sonhos e melhores leituras.


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