São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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LIVRO/LANÇAMENTO

Com obra sobre o cineasta iraniano, crítico interrompe dedicação exclusiva aos temas brasileiros

Bernardet muda o rumo com Kiarostami

Olivier Laban-Mattei/France Presse
A atriz Mania Akbari e o diretor Abbas Kiarostami do filme "Dez", durante exibição em Cannes


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Ao traçar os "Caminhos de Kiarostami" -volume que a Companhia das Letras deposita neste mês nas livrarias-, o autor Jean-Claude Bernardet mudou a rota habitual de sua carreira de crítico cinematográfico, que há décadas vem sendo construída em paralelo com as atividades de roteirista ("Um Céu de Estrelas", de Tata Amaral) e diretor ("São Paulo -°Sinfonia e Cacofonia").
O livro sobre a obra do cineasta iraniano Abbas Kiarostami interrompe um histórico de dedicação exclusiva do crítico à análise de títulos brasileiros e põe de lado o método de esgotar a interpretação de um filme considerando exclusivamente o que é visto na tela, sem lançar mão de nenhuma informação alheia à obra.

Emoção
Nas palavras de Bernardet, o estilo anterior privilegiava a idéia de "trabalhar o filme como um texto, sendo que nenhum elemento exterior deveria ajudar a compreendê-lo". Agora distante dessa "postura muito rigorosa", o crítico se permitiu ter como objeto de análise "não apenas o filme, mas o que diz o cineasta, o que ele considera serem suas intenções, o que se diz em volta dele" e foi mais além: "Incorporei minha emoção diante do filme".
Configurada numa imagem, a emoção de Bernardet com a obra de Kiarostami é uma curva ascendente. No primeiro contato, havia "gostado muito" de "Vida e Nada Mais" (1991). Com "Close Up" (1990), sentiu "realmente um golpe", sucedido pelo "deslumbramento total" com "Gosto de Cereja" (1997), que "Dez" (2002) ainda conseguiu superar. "Durante a semana, eu assisti a ele três vezes. Levava as pessoas para o cinema e dizia: "Todo o futuro está aí"."
É com o filme-farol "Dez" que Bernardet abre o percurso dos "Caminhos de Kiarostami", introduzindo uma reflexão sobre o título do filme. Ou melhor, partindo do título para demonstrar que Kiarostami, 64, usa uma gramática particular no cinema, incompreendida quando vista com olhos que buscam velhos padrões.
A seguir, o crítico propõe um novo olhar sobre o uso recorrente do carro (como elemento lingüístico) em Kiarostami e avista o gosto do diretor pelas questões irresolvidas como expressão na tela do "princípio da incompletude".
No total, "Caminhos de Kiarostami" tenta demonstrar como, com seus fiapos de enredo, o iraniano encara o cinema não como "suporte de uma história", mas como "materialidade de luz, cor, corte, recorte".
Mais de uma vez, ao citar entrevistas de Kiarostami sobre seus filmes, cotejando-as com declarações de outros membros da equipe, Bernardet anota imprecisões no discurso do diretor. Não é que esteja apontando o dedo para incoerências ou falseamentos do iraniano. O que Bernardet faz é demonstrar como criador e criatura são atravessados pelos binômios realidade/artifício; ficção/ documentário; fato/invenção.
Ao expor a tensão desses opostos, o crítico não propõe que há um lado a ser escolhido. Ao contrário, defende que "a verdade não é da ordem do realismo, das aparências, do cotidiano, dos fatos. E sim uma questão filosófica". Como o cinema de Kiarostami. A estrutura de "Caminhos de Kiarostami" inclui ao longo dos capítulos pequenos textos independentes. Eles apontam em outras direções, ainda que correlatas ao tema principal. De início, Bernardet pensou em publicar as digressões como apêndices. Mas achou o formato "tradicional".
Foi quando o crítico percebeu que seu pensamento "está mudando" e requisitava "uma nova forma" de expressão. Os "Caminhos de Kiarostami" acabaram desenhando-se como uma estrada repleta de vicinais.
Muda a forma de exibi-la, mas não a convicção de que o sentido da crítica é a possibilidade do diálogo, idéia que se apoderou de Bernardet nos anos 60, quando ele despontou como o importante crítico que de fato se tornaria.
"Quando escrevi um artigo sobre "A Doce Vida", do Fellini [1920-1993], que teve muita repercussão, me veio essa idéia: o Fellini não vai ler. E vi que não faz sentido escrever uma crítica se você não pode dialogar com o setor de produção." A partir daí, Bernardet escreveu exclusivamente sobre temas brasileiros.
A Kiarostami, entregará cópia de seu livro traduzida para o inglês. "Ele poderá ler ou não. Mas não queria que a possibilidade do diálogo fosse impedida por uma questão de língua." Os caminhos terminam num sinal aberto.

CAMINHOS DE KIAROSTAMI. De: Jean-Claude Bernardet. Editora: Companhia das Letras. Quanto: a definir (165 págs.).


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