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TEATRO
Atriz faz em cena retrato do pai quando prisioneiro de guerra
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Certa noite, o comerciante Majer Jesion, judeu de ascendência
polonesa, acompanhou a filha
adolescente até o teatro da Hebraica, em São Paulo.
Eles assistiam a uma apresentação da peça "Bent", do americano
Martin Sherman, quando veio a
cena dos presos que removiam
pedras de um canto para o outro
num campo de concentração.
"Esse era o meu "trabalho" lá",
disse Jesion, emocionado. A filha
Renata tinha 11 anos.
Mais de duas décadas depois,
no apartamento do bairro do Paraíso, pai e filha dividem lembranças com o repórter para alavancar outras ainda mais distantes, vividas pelo hoje aposentado
Jesion, 80, prisioneiro de guerra
que sobreviveu na Alemanha de
1940 a 1945, Segunda Guerra.
As agruras do período são pinceladas num "pequeno épico de
estações", como a autora define a
peça "121.023J", escrita a partir de
entrevistas com o pai.
Renata, que já trabalhou com
Antunes Filho, Gerald Thomas e
Dionisio Neto e está no filme "Olga", convidou Ariela Goldmann
para a direção. Vai contracenar
com Zemanuel Piñero e Mauro
Schames. A temporada estréia
hoje no Sesc Ipiranga.
O título embaralha os meses de
nascimentos de Jesion e da autora, somados à inicial do sobrenome, mas poderia ser o "143.062"
tatuado no braço esquerdo dele.
O comerciante morava em Gostynin, a 120 km de Varsóvia, na Polônia. Tinha 17 anos quando um
dia saiu de casa para comprar pão
e nunca mais voltou: foi detido e
deportado para a Alemanha.
Jesion passou por quatro campos de concentração. Sofreu os
piores momentos no de Birkenau,
em Auschwitz. Transportado para outra realidade, ele teve no pão
escasso o alimento que o mantinha em pé; e numa desconhecida
voz que o "acompanhava", a sua
principal interlocutora no "jogo
da sobrevivência".
Renata, 31, apreende a história
do pai sob perspectiva "leve, picaresca". "Não é uma peça para sensibilizar a colônia judaica. Quero
universalizá-la", diz a caçula que
sonha ainda com versão para documentário ("As Manhãs de Majer", roteiro pronto).
Um bom retrato seria o do homem que se diz habituado a "começar do zero". Há quatro anos,
Jesion foi operado no coração.
Nada, talvez, se comparado a dois
momentos de risco citados na peça, nos últimos dias como prisioneiro dos nazistas.
Quando já tinha sido acolhido
pela Cruz Vermelha, eis que Jesion deparou com soldados da Juventude Hitlerista. Foi conduzido
a um delegado anti-semita. Perguntado se era judeu, disse que
sim. Levou um tapa do delegado,
que incumbiu um soldado de lhe
dar um fim. "Eu sobrevivi até agora. Se tiver que me matar, não atire pelas costas", pediu Jesion ao
soldado que o mandara caminhar. "Leb wohl", ordenou-lhe o
soldado, em alemão, algo como
"adeus", "vá, se manda".
E assim fez Majer Jesion. Depois
da guerra, ele deambulou mais alguns anos pela Alemanha. Chegou ao Brasil em 1949, atendendo
ao chamado de uma tia. Era Carnaval no Rio de Janeiro. "Puxa, saí
do inferno diretamente para o
hospício", brincou.
Logo mais à noite, a dois dias de
completar 81 anos, assistirá ao espetáculo ao lado da mulher, Jamile. "A vida tem sido muito boa,
não posso me queixar."
121.023J. Onde: Sesc Ipiranga - teatro (r.
Bom Pastor, 822, tel. 0/xx/11/3340-2000). Quando: estréia hoje, às 21h;
quartas-feiras deste mês (13, 20 e 27/10);
quintas do próximo (4, 11, 18 e 25/11); e
dia 1º/12 (qua.), sempre às 21h. Quanto:
entrada franca.
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