São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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TEATRO

Atriz faz em cena retrato do pai quando prisioneiro de guerra

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Certa noite, o comerciante Majer Jesion, judeu de ascendência polonesa, acompanhou a filha adolescente até o teatro da Hebraica, em São Paulo.
Eles assistiam a uma apresentação da peça "Bent", do americano Martin Sherman, quando veio a cena dos presos que removiam pedras de um canto para o outro num campo de concentração.
"Esse era o meu "trabalho" lá", disse Jesion, emocionado. A filha Renata tinha 11 anos.
Mais de duas décadas depois, no apartamento do bairro do Paraíso, pai e filha dividem lembranças com o repórter para alavancar outras ainda mais distantes, vividas pelo hoje aposentado Jesion, 80, prisioneiro de guerra que sobreviveu na Alemanha de 1940 a 1945, Segunda Guerra.
As agruras do período são pinceladas num "pequeno épico de estações", como a autora define a peça "121.023J", escrita a partir de entrevistas com o pai.
Renata, que já trabalhou com Antunes Filho, Gerald Thomas e Dionisio Neto e está no filme "Olga", convidou Ariela Goldmann para a direção. Vai contracenar com Zemanuel Piñero e Mauro Schames. A temporada estréia hoje no Sesc Ipiranga.
O título embaralha os meses de nascimentos de Jesion e da autora, somados à inicial do sobrenome, mas poderia ser o "143.062" tatuado no braço esquerdo dele. O comerciante morava em Gostynin, a 120 km de Varsóvia, na Polônia. Tinha 17 anos quando um dia saiu de casa para comprar pão e nunca mais voltou: foi detido e deportado para a Alemanha.
Jesion passou por quatro campos de concentração. Sofreu os piores momentos no de Birkenau, em Auschwitz. Transportado para outra realidade, ele teve no pão escasso o alimento que o mantinha em pé; e numa desconhecida voz que o "acompanhava", a sua principal interlocutora no "jogo da sobrevivência".
Renata, 31, apreende a história do pai sob perspectiva "leve, picaresca". "Não é uma peça para sensibilizar a colônia judaica. Quero universalizá-la", diz a caçula que sonha ainda com versão para documentário ("As Manhãs de Majer", roteiro pronto).
Um bom retrato seria o do homem que se diz habituado a "começar do zero". Há quatro anos, Jesion foi operado no coração. Nada, talvez, se comparado a dois momentos de risco citados na peça, nos últimos dias como prisioneiro dos nazistas.
Quando já tinha sido acolhido pela Cruz Vermelha, eis que Jesion deparou com soldados da Juventude Hitlerista. Foi conduzido a um delegado anti-semita. Perguntado se era judeu, disse que sim. Levou um tapa do delegado, que incumbiu um soldado de lhe dar um fim. "Eu sobrevivi até agora. Se tiver que me matar, não atire pelas costas", pediu Jesion ao soldado que o mandara caminhar. "Leb wohl", ordenou-lhe o soldado, em alemão, algo como "adeus", "vá, se manda".
E assim fez Majer Jesion. Depois da guerra, ele deambulou mais alguns anos pela Alemanha. Chegou ao Brasil em 1949, atendendo ao chamado de uma tia. Era Carnaval no Rio de Janeiro. "Puxa, saí do inferno diretamente para o hospício", brincou.
Logo mais à noite, a dois dias de completar 81 anos, assistirá ao espetáculo ao lado da mulher, Jamile. "A vida tem sido muito boa, não posso me queixar."


121.023J. Onde: Sesc Ipiranga - teatro (r. Bom Pastor, 822, tel. 0/xx/11/3340-2000). Quando: estréia hoje, às 21h; quartas-feiras deste mês (13, 20 e 27/10); quintas do próximo (4, 11, 18 e 25/11); e dia 1º/12 (qua.), sempre às 21h. Quanto: entrada franca.


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