São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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ANÁLISE

O perseguidor

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fernando Sabino tem o perfil mais singular da literatura brasileira no século 20. É uma celebridade, no sentido hollywoodiano e global da palavra. Aparentemente, assemelha-se a Erico Verissimo e a Jorge Amado. Deles, no entanto, se distancia por ter construído sua obra em cima de sólida, irremovível e única paixão pela literatura.
Idealizou-a sem o compromisso partidário e revolucionário, arma feroz e recompensadora nas mãos de Amado. Escreveu-a sem cair nas graças do entretenimento de alta qualidade, porta para o sucesso de Verissimo. Aparentemente, Paulo Coelho quer assemelhar-se a ele. Como poderia, se Fernando, além de apaixonado pelas letras, é um estilista impecável, um escritor que na mais tenra idade "quis ser gramático", como confessou várias vezes?
Fernando Sabino foi um perseguidor, o perseguidor do Santo Graal da literatura. Por ser um perseguidor, viveu de maneira atormentada a relação entre a literatura e o catolicismo, alinhando-se a uma estirpe defunta de escritores com formação cristã, como Octávio de Faria, Lúcio Cardoso e Augusto Frederico Schmidt. O estranho e pouco salutar parentesco, associado à paixão pela literatura, são os resquícios que guarda do modo francês de ser escritor no Brasil. A esse modo de ser devem ser também associadas sua amizade por Mario de Andrade, atento mentor desde a publicação do primeiro livro de contos, "Os Grilos Não Cantam Mais" (1941), e também suas relações de afeto com Clarice Lispector, companheira em idade e assombro.
O amor pelo cinema, pelos romances policiais (julgava Raymond Chandler "um dos maiores escritores do nosso tempo") e uma longa estada em Manhattan logo após o fim da Segunda Guerra, fizeram com que desse por encerrado o ciclo do modo francês de ser escritor para inaugurar, entre nós, o modo norte-americano. Ostentava todas as qualidades, defeitos e cacoetes dos romancistas da chamada geração perdida, em particular os de Scott Fitzgerald. Seu primeiro grande romance, "O Encontro Marcado" (1956), guarda semelhanças com "Este Lado do Paraíso" (1920).
Não é difícil decodificar hoje o receituário que Fernando Sabino e aqueles escritores puseram em prática para se tornarem celebridades. A antipatia pelos aparatos ideológicos de pensamento (leia-se o marxismo) no processo de construção dos personagens e da obra de arte. A crença de que se pode escrever a história duma sociedade com o instrumental frágil e estético da ficção. A classe média urbana como objeto exclusivo da escrita artística. O fastio pelos modismos formais de composição do romance, tão ao gosto das vanguardas históricas (em contraste, leiam-se os romances de Oswald de Andrade ou de Guimarães Rosa). A dedicação obsessiva a um estilo enxuto, gramaticalmente correto e bem-humorado, quase sem ironias, como arma de sedução do leitor moderno. O apoio popular que emprestam ao elitismo da literatura pela repercussão que conseguem na mídia graças a atividades paralelas, tidas como "hobby" (Fernando foi campeão de natação na juventude e, na idade madura, exibia-se na bateria em grupos de jazz; foi ainda dono de editora e cineasta).
A singularidade maior da celebridade que é Fernando Sabino, sua redenção como escritor, está na autenticidade e no despojamento. Nem tudo que cai na rede é peixe. Está na coragem em ter associado o destino de pelo menos dois dos seus grandes livros à recomendação de Horácio, o retórico latino. Por décadas "O Grande Mentecapto" (1979) ficou trancado na gaveta sob o longuíssimo título de "Crônica das Aventuras e Desventuras do Grande Mentecapto Geraldo Viramundo...". Seu último grande lançamento, "Os Movimentos Simulados" (2004), teve uma primeira versão dos anos 1940. Confessou em entrevista que tinha jogado fora várias novelas. Dava o motivo: "Alguém dizia "isso não presta", pronto, o negócio ia para o lixo".
O escritor Fernando Sabino seria tão pop quanto o papa, não fosse ele tão modesto ao falar da própria atividade literária. Confidencia: "O artista é sempre meio desajeitado, um deficitário, um descompensado, que só chega ao seu próprio tamanho na hora em que realiza a sua obra". Fernando era um legítimo perseguidor, na tradição do personagem de Julio Cortázar. Nasceu homem, morreu menino. Escrevia todos os dias, com gênio ou sem gênio, como costumava dizer Stendhal. Ele o dizia de maneira mais pitoresca, citando o jogador Didi: "Treino é treino, jogo é jogo". Nada mais revelador do déficit entre a condição humana e a superestima do Graal literário, nada mais comprobatório da razão que transforma toda a vida numa busca infinita, que os vários manuscritos que deixou por anos na gaveta à espera da salvação pela inexcedível paixão literária.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "O Falso Mentiroso" e "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)


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