São Paulo, quinta-feira, 13 de outubro de 2005

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NINA HORTA

A farinha do índio

A Paula conheceu meus livros antes que eu a conhecesse. Passou dias na casa vazia subindo e descendo de estantes, procurando alguma coisa que ainda não houvesse passado por suas mãos. Tarefa árdua, somos de uma pobreza notável em matéria de "comida brasileira". Se não fosse o velho Cascudo, poderíamos dizer que temos é nada. Um livrinho aqui, outro ali... Agora a Paula surge com sua tese, "Farinha, Feijão e Carne Seca" (ed. Senac, R$ 35). Tanto melhor, é a comida entrando na universidade...

 

Folha - Paula, esta é sua tese de doutorado? Você mostra, e muito bem, como a farinha, feijão e carne-seca formaram o tripé que veio a ser a nossa comidinha do dia-a-dia, resultado do encontro entre branco, negro e índio. Só senti uma coisa, que talvez você não goste muito desta mistura, porque nunca fez "hummm" nem passou por baixo da mesa...
Paula Pinto e Silva -
Eu amo o tripé farinha, feijão, carne-seca. Se tiver abóbora e couve, melhor ainda. Acho realmente que é onde começa a diferença entre nós e os nossos vizinhos latinos e outros... Mas texto acadêmico tem que ter suas formalidades para ser considerado científico.

Folha - Descreve para mim, assim, em poucas palavras, uma mesa do índio no período colonial.
PPS -
Vou falar genericamente, embora de perto as coisas sejam um pouco diferentes... No período colonial, em geral, índio não tem mesa; come peixe ou carne de caça (frescos, secos, cozidos, assados...), milho e mandioca cozidos, beiju (de milho e de mandioca), mingaus, batata-doce e cará, inhame, feijão sem caldo, farinhas, mel com farinha dura, tudo com pouco "requinte culinário".

Nina - Isso quer dizer que eles não ligam para a comida?
PPS -
Ao contrário, ligam muito, mas o requinte está muito mais na satisfação simbólica que a comida traz, observando sempre os preceitos, tabus, festas, resguardos. A comida satisfaz o estômago, mas também tem que garantir um equilíbrio cosmológico. Nunca vi, nas aldeias que visitei, índio comer carne sem farinha. Às vezes, tinha a carne, tinha a fome, não tinha a farinha. Eles não comiam, ficavam com fome, onde é que já se viu comer a carne -elemento masculino- e não a farinha -elemento feminino?

Folha - Lembro-me que o Anquier, o padeiro, foi fazer uma reportagem para aprender a cozinhar com os índios e acabou ensinando a fazer pão. Já te aconteceu de querer aprender e acabar ensinando?
PPS -
Já. Eu queria muito aprender, e as índias me ensinavam a fazer arroz, feijão, abriam lata de pomarola... Então, quando fui visitar os índios Tapirapé, no Mato Grosso, percebi que a melhor forma de aprender era olhar, comer, não perguntar. Experimentei carnes deliciosas, como o veado, só assado, como churrasco. Saí de fininho de um tatu cozido quando descobri que mulher não parida não podia comer tatu... Participei do cozimento de uma grande tartaruga, que foi ao fogo ainda viva, perninhas balançando, casco estrilando. Depois de cozida, ainda no fogo, raspam parte da gordura amarela que fica em cima, guardam num pote (serve de óleo para corpo e cabelo), e todo mundo se põe a comer, cada um pega o seu pedaço, com a mão. Quando acaba, jogam farinha de mandioca no caldo, formando como um pirão, fazem os punhados com a mão e mandam bala. Depois limpam o casco, que vira banco na casa do dono da tartaruga.

Folha - No último capítulo você dá um enfoque teórico e esbanja Lévi-Strauss. A antropóloga Thekla Hartmann me dizia que só o próprio Lévi-Strauss se entende, e assim mesmo nos seus momentos mais lúcidos. Sempre penso que se dependêssemos dele para fazer um mexidinho estaríamos perdidos, sairia cru.
PPS -
Lévi-Strauss é assim mesmo, é como um quebra-cabeças, mas eu adoro... Outro dia fiquei sabendo que o Alex Atala já conhecia e gostava do triângulo cru-cozinhado-podre, proposto por ele, e fiquei superfeliz. Quem sabe a gente não tente entender o Lévi sentados à mesa, em volta de boa comida e boa bebida? Assim tudo fica mais divertido...


@ - ninahort@uol.com.br

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