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Crítica/"Nas Peles da Cebola"
Realidade esquenta obra de Grass
Livro foi polêmico pelo fato de o escritor que ganhou o Nobel revelar que em sua juventude foi adepto do nazismo
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Nas Peles da Cebola" é sem dúvida o
livro de caráter
mais autobiográfico de Günter
Grass. Nele o autor destaca a
atividade de comerciante como
uma de suas capacidades
aprendidas desde cedo.
Ele admite que até hoje é um
negociante implacável. Quando
criança ele perambulava pela
sua cidade natal, Danzig, cobrando dos maus pagadores da
loja de produtos do Oriente de
sua mãe. Neste livro singular
ele se mostra também implacável quando se trata de uma outra dívida: desta vez com o seu
próprio passado. Com um passado, aliás, que ainda assombra
a Alemanha, mas que, no seu
caso, ele conseguira esconder
até quase completar seu octogésimo aniversário. Este segredo bem guardado é, evidentemente, o de sua participação no
Terceiro Reich de Hitler.
Grass confessou ter pertencido à Waffen-SS (tropa de elite
do regime nazista) neste livro
publicado em 2006. Esta confissão levou muitos a bradarem
que o autor deveria devolver à
Academia Sueca seu Prêmio
Nobel, conquistado em 1999.
A recepção deste livro deixa
claro em que medida a literatura ainda hoje é capaz de mobilizar politicamente nossa sociedade. Pena que nestes momentos muitas vezes a obra acabe
ficando em segundo plano.
Antes de condenar o autor,
no entanto, vale a pena ler este
livro e confrontá-lo com a obra
de Grass. Neste relato autobiográfico, que tem muito de romance e se inspira largamente
no autor barroco Grimmelshausen, encontramos a chave
para inúmeras cenas e personagens de romances seus como
"O Tambor", "O Linguado" ou
"Anestesia Local". Para os
adeptos do estilo barroco e caudaloso do autor, este livro também é um prato cheio e suculento. O tempero de realidade,
aliás, torna tudo mais picante.
Auto-retrato
O auto-retrato deste personagem com duplo talento
(Grass é também um reconhecido artista plástico) inicia-se
em 1939, ano da eclosão da Segunda Guerra Mundial. História de vida e história da Alemanha se encontram já neste corte. O autor contava então com
apenas 12 anos. Como Giotto,
que quando pequeno teria pintado paisagens como pastor na
Toscana, Grass nos conta que
desde criança já colecionava reproduções e admirava as artes
plásticas. Estas imagens eram
estampadas em pacotes de cigarro que ele colecionava. Já o
amor pela literatura veio da
mãe, em cuja pequena biblioteca caseira ele se iniciou lendo
clássicos da língua alemã.
Como no famoso livro de
Goethe, "Dichtung und Wahrheit" (algo como Poesia e verdade), no qual o autor de Weimar narrou literariamente sua
vida de jovem escritor e apreciador das artes, também Grass
explora a fronteira entre a recordação e a ficção da sua própria vida. Também ele se apresenta como um artista e escritor em formação. O livro termina em 1959, quando o autor publicou "O Tambor" e se tornou
um fenômeno de público.
Mas as experiências narradas
são bem mais "radicais" que as
de Goethe. Suas revelações fazem lembrar também a tradição da confissão que, de santo
Agostinho a Rousseau, visa
uma absolvição, uma limpeza
das "sujeiras" do escritor. É como se o autor se desdobrasse
em duas pessoas: passado e
presente, realidade e capacidade de escritor, "pecado" e linguagem redentora, ou tentando
esta redenção.
A metáfora da cebola serve
para indicar que a memória é
composta de camadas e que
choramos ao penetrar naquelas
mais profundas. Ele usa também abundantemente a metáfora do âmbar para tratar de
seu passado como que fossilizado, encapsulado, que ele observa. Sua obra literária revela-se,
deste modo, como uma espécie
de grande figura de linguagem,
como uma forma de dizer o que
ele não queria ou conseguia
confessar diretamente.
Que ele, por exemplo, foi voluntário do exército e um devoto do Führer, mesmo na época
logo após o fim da guerra. Mas o
trabalho de memória e literário
do livro ultrapassa esta confissão. As descrições das sobrevivências de Grass em meio às
batalhas são dignas de atenção.
O grande gesto deste livro
consiste em permitir que vida e
obra finalmente se confundam.
Cabe a nós leitores tentarmos
estabelecer as bordas cambiantes de cada uma destas margens.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de
teoria literária na Unicamp e autor de "Ler o Livro do Mundo" e de "O Local da Diferença"
NAS PELES DA CEBOLA
Autor: Günter Grass
Tradução: Marcelo Backes
Editora: Record
Quanto: R$ 60 (420 págs.)
Avaliação: ótimo
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