São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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Crítica/"Nas Peles da Cebola"

Realidade esquenta obra de Grass

Livro foi polêmico pelo fato de o escritor que ganhou o Nobel revelar que em sua juventude foi adepto do nazismo

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Nas Peles da Cebola" é sem dúvida o livro de caráter mais autobiográfico de Günter Grass. Nele o autor destaca a atividade de comerciante como uma de suas capacidades aprendidas desde cedo.
Ele admite que até hoje é um negociante implacável. Quando criança ele perambulava pela sua cidade natal, Danzig, cobrando dos maus pagadores da loja de produtos do Oriente de sua mãe. Neste livro singular ele se mostra também implacável quando se trata de uma outra dívida: desta vez com o seu próprio passado. Com um passado, aliás, que ainda assombra a Alemanha, mas que, no seu caso, ele conseguira esconder até quase completar seu octogésimo aniversário. Este segredo bem guardado é, evidentemente, o de sua participação no Terceiro Reich de Hitler.
Grass confessou ter pertencido à Waffen-SS (tropa de elite do regime nazista) neste livro publicado em 2006. Esta confissão levou muitos a bradarem que o autor deveria devolver à Academia Sueca seu Prêmio Nobel, conquistado em 1999.
A recepção deste livro deixa claro em que medida a literatura ainda hoje é capaz de mobilizar politicamente nossa sociedade. Pena que nestes momentos muitas vezes a obra acabe ficando em segundo plano. Antes de condenar o autor, no entanto, vale a pena ler este livro e confrontá-lo com a obra de Grass. Neste relato autobiográfico, que tem muito de romance e se inspira largamente no autor barroco Grimmelshausen, encontramos a chave para inúmeras cenas e personagens de romances seus como "O Tambor", "O Linguado" ou "Anestesia Local". Para os adeptos do estilo barroco e caudaloso do autor, este livro também é um prato cheio e suculento. O tempero de realidade, aliás, torna tudo mais picante.

Auto-retrato
O auto-retrato deste personagem com duplo talento (Grass é também um reconhecido artista plástico) inicia-se em 1939, ano da eclosão da Segunda Guerra Mundial. História de vida e história da Alemanha se encontram já neste corte. O autor contava então com apenas 12 anos. Como Giotto, que quando pequeno teria pintado paisagens como pastor na Toscana, Grass nos conta que desde criança já colecionava reproduções e admirava as artes plásticas. Estas imagens eram estampadas em pacotes de cigarro que ele colecionava. Já o amor pela literatura veio da mãe, em cuja pequena biblioteca caseira ele se iniciou lendo clássicos da língua alemã.
Como no famoso livro de Goethe, "Dichtung und Wahrheit" (algo como Poesia e verdade), no qual o autor de Weimar narrou literariamente sua vida de jovem escritor e apreciador das artes, também Grass explora a fronteira entre a recordação e a ficção da sua própria vida. Também ele se apresenta como um artista e escritor em formação. O livro termina em 1959, quando o autor publicou "O Tambor" e se tornou um fenômeno de público.
Mas as experiências narradas são bem mais "radicais" que as de Goethe. Suas revelações fazem lembrar também a tradição da confissão que, de santo Agostinho a Rousseau, visa uma absolvição, uma limpeza das "sujeiras" do escritor. É como se o autor se desdobrasse em duas pessoas: passado e presente, realidade e capacidade de escritor, "pecado" e linguagem redentora, ou tentando esta redenção.
A metáfora da cebola serve para indicar que a memória é composta de camadas e que choramos ao penetrar naquelas mais profundas. Ele usa também abundantemente a metáfora do âmbar para tratar de seu passado como que fossilizado, encapsulado, que ele observa. Sua obra literária revela-se, deste modo, como uma espécie de grande figura de linguagem, como uma forma de dizer o que ele não queria ou conseguia confessar diretamente.
Que ele, por exemplo, foi voluntário do exército e um devoto do Führer, mesmo na época logo após o fim da guerra. Mas o trabalho de memória e literário do livro ultrapassa esta confissão. As descrições das sobrevivências de Grass em meio às batalhas são dignas de atenção. O grande gesto deste livro consiste em permitir que vida e obra finalmente se confundam.
Cabe a nós leitores tentarmos estabelecer as bordas cambiantes de cada uma destas margens.


MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de teoria literária na Unicamp e autor de "Ler o Livro do Mundo" e de "O Local da Diferença"


NAS PELES DA CEBOLA
Autor: Günter Grass
Tradução: Marcelo Backes
Editora: Record
Quanto: R$ 60 (420 págs.)
Avaliação: ótimo



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