JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Mesmo que não fosse um filme esplêndido, "De Olhos Bem Fechados" teria o mérito de trazer de volta à baila o austríaco Arthur Schnitzler (1862-1931), um dos grandes escritores do século.
Enquanto não pode publicar a novela que inspirou o filme de Kubrick, "Breve Romance de Sonho" (leia texto ao lado), a Companhia das Letras está reeditando outras obras importantes do autor, que estavam há tempos fora de circulação: a novela "O Retorno de Casanova" e a coletânea "Contos de Amor e Morte".
A primeira foi escrita entre 1915 e 1918, e a segunda reúne narrativas que Schnitzler escreveu entre 1887 e 1917 e que foram reunidas em um livro póstumo.
"O Retorno de Casanova" é uma reconstituição ficcional do momento em que, aos 53 anos, o célebre conquistador Giovanni Giacomo Casanova (1725-98) está prestes a conseguir voltar para sua Veneza natal, de onde foi banido depois de fugir da prisão.
Dividido entre, de um lado, a orgulhosa construção de uma auto-imagem aristocrática e, de outro, a humilhação de submeter-se aos senhores de Veneza, Casanova se vê às voltas com um conflito interior ainda mais profundo, aquele que opõe a melancolia serena do velho à compulsão erótica do inquieto conquistador.
Casanova recusa-se a envelhecer -e essa recusa produz o trágico, o cômico e o patético de sua situação, que Schnitzler explora com sutileza e perspicácia, transitando habilmente entre a ação do herói e suas fantasias.
O trânsito entre o "real" e a fantasia -seja ela sonho, pesadelo ou alucinação- é também o fio que une os "Contos de Amor e Morte", conferindo-lhes uma atmosfera estranha e peculiar.
Schnitzler, estudioso dos desvãos da mente humana, empreendeu na ficção um trabalho de prospecção análogo ao que Freud realizava paralelamente na teoria e na prática clínica.
Organizados por ordem cronológica, os "Contos de Amor e Morte" mostram bem o desenvolvimento desse trabalho investigativo, que se torna cada vez mais sutil e sofisticado do ponto de vista literário.
A diferença entre os primeiros contos e os últimos é o refinamento da passagem entre os vários planos de percepção do real, de tal maneira que, diante das narrativas mais recentes, nos sentimos imersos num mundo em que é impossível distinguir o que é real do que é projeção subjetiva.
Já nos primeiros contos, que tratam quase sempre de adultérios no seio da burguesia vienense, Schnitzler constrói um universo fortemente moldado pela subjetividade dos personagens.
A partir daí, manipulando com crescente maestria o ponto de vista, o escritor apresenta situações invariavelmente filtradas por personagens-narradores "não confiáveis".
Sua prosa, mesmo quando simula uma naturalidade displicente, é de uma precisão diabólica, só dando a ver aquilo que interessa à caracterização dos personagens ou à criação de uma singular atmosfera de pesadelo.
O livro começa bem e vai melhorando sem parar até chegar à obra-prima que é o conto longo "Fuga para a Escuridão", narrativa terrível da luta de um homem contra a própria loucura.

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