São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2000

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ARIANO SUASSUNA

"Canudos entre dois Brasis"

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

O CONSELHEIRO E O PRESIDENTE

No artigo intitulado "Canudos entre dois Brasis", publicado na Gazeta de Rio Pardo de 5 de agosto deste ano, o escritor e professor Nicola S. Costa fez honrosas referências a meus escritos sobre o Arraial criado por Antônio Conselheiro e destruído pela brutalidade positivista e "modernizante", numa política que, alguns anos depois, somando-se à economia entreguista e insensível de Campos Sales e Joaquim Murtinho, iria se tornar precursora de Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan.
Pedindo perdão pela vaidade que isto implica, passo a transcrever alguns trechos do artigo de Nicola S. Costa:
"Suassuna afirma que, tanto na época de Canudos como hoje, éramos governados por uma "insensível elite econômica e política", (...) o Brasil "oficial e mais claro", o dos " brancos e poderosos", dono da "cultura" e identificado com São Paulo e o Rio de Janeiro. Era uma elite urbana que representava os ideais positivistas e modernizantes".
"A essa elite, contrapunha-se "nosso povo, pobre, negro, índio e mestiço", (...) o Brasil "real e mais escuro", autêntico, vivendo na "barbárie". Era a população rural, apegada à religiosidade e aos arcaísmos".
"Para a elite (...) Canudos representava "um país inimigo, que era necessário invadir, assolar e destruir (...), uma "sociedade justa, fraterna e despojada", como no passado havia sido o Quilombo dos Palmares e como viria a ser a comunidade dos caboclos da região do Contestado alguns anos após a guerra de Canudos".
"O conflito acontecido em Canudos "é o mesmo de hoje, com o Brasil oficial esmagando e sufocando o povo do Brasil real", pois "os acontecimentos de Canudos continuam a se repetir a cada instante. Em todos os lugares. Em todos os campos de atividade. Diariamente, incessantemente'".
"Ampliando sua visão para o plano internacional, Suassuna projeta Canudos nos países de Terceiro Mundo, designando-o como "um imenso arraial de Canudos, pobre e injustiçado" pelas potências dominantes do mundo atual. No plano interno, Canudos é identificado com a repressão oficial e policial aos posseiros, favelados etc., que, para ele, "são outros tantos arraiais de Canudos que estão sendo esmagados e humilhados'".

Nicola S. Costa afirma, com toda razão, que eu discordo da idéia de que primeiro é preciso enriquecer para, somente então, se tentar a instauração da justiça (como se esta pudesse ser adiada). E comenta:
"Suassuna discorda (do adiamento) e recomenda simplesmente que o ideal seria (...) "socializar nem que fosse a pobreza, reduzindo-se o luxo supérfluo para diminuir a distância entre opulentos e miseráveis, numa sociedade mais justa, fraterna e despojada'".
"Dever-se-ia "ampliar e aprofundar a comunidade verdadeira mas local de Canudos em comunidade verdadeira e nacional", já que nela o critério espiritual e humano estava acima da consideração material e econômica, e não o contrário, como apregoa hoje o neoliberalismo, com sua "modernização falsificadora e falsa (...). Basta observar o que acontece em nosso país, desde as privatizações até o tráfico de drogas (...)'".
"A propaganda consumista pratica uma autêntica "lavagem cerebral" nas novas e velhas gerações, através dos meios de comunicação, a fim de "modernizá-las", isto é, integrá-las ao mercado consumidor"
.
Depois daí, Nicola S. Costa passa a transcrever trechos do depoimento que Nertan Macedo ouviu de Honório Vilanova e no qual fica perfeitamente evidenciado o sonho pré-socialista e messiânico dos seguidores de Antônio Conselheiro (sonho que tanto me toca e que, a meu ver, deveria ser o ponto de partida de nossa reflexão e de nossa ação política no Brasil). Dizia Honório Vilanova:
"Canudos era um pedaço de chão bem-aventurado. Não precisava nem mesmo de chuva. Tinha de tudo (...). Quem tinha roça tratava da roça, na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de reza ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino (...). Não havia precisão de roubar em Canudos porque tudo existia em abundância, gado e roçado, provisões não faltavam."
No texto de Honório Vilanova, grifei a frase segundo a qual em Canudos tudo era de todos, porque ela confirma a de Euclydes da Cunha, para quem o Conselheiro "abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum".
Por outro lado, só pode ter sido pelas deformações causadas em sua cabeça pelo Brasil oficial, que a meu Mestre, simpatizante do socialismo, tenha causado tanta estranheza, e quase repugnância, aquela sociedade socialista em bruto, na qual havia "apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota-parte, revertendo o resto para a companhia" (isto é, para a comunidade).
Continua na próxima semana.


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