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CRÍTICA
Realismo da obra provoca estranhamento
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Dois meninos pobres deixam a casa da mãe para seguir os trilhos do trem, à procura
do pai. O garoto menor, que teria
uns dez anos, é quem conta a história. Está o tempo todo fascinado
pelo irmão mais velho, a quem
chama simplesmente de Mano.
E isso é tudo, ou quase tudo. A
novela de Paulo Rodrigues é tão
curta e despojada que é preciso
tomar cuidado para não lê-la depressa demais.
Mas a simplicidade de "À Margem da Linha" é resultado de uma
estratégia cuidadosa. O autor não
explora sentimentalmente o tema
(um tanto desgastado) da "procura do pai". Não tenta rechear o livro com ornamentos de estilo.
Não investe na análise psicológica
nem procura esmiuçar o relacionamento entre os personagens.
Partindo de um cenário realista,
o dos arrabaldes de alguma cidadezinha do interior, o livro aos
poucos vai produzindo no leitor
uma sensação de estranhamento.
As estações da linha férrea não
têm nome, a paisagem poderia ser
a de qualquer lugar, e o narrador
tem como companheiro de caminhada apenas esse Mano, de
quem sabemos pouco, cada vez
menos.
Certamente há algo de "mítico"
em "À Margem da Linha", como
bem diz Rodrigo Lacerda na orelha do livro. Podemos pensar no
contraste entre a perseverança
idealista do irmão mais velho e o
conformismo algo ingênuo do
narrador; ou notar que o livro trata da passagem da meninice para
a idade adulta.
O livro ao mesmo tempo admite
e refuta interpretações desse tipo.
Pode ser lido como uma parábola,
mas há também uma corrente de
ironia, de desmitificação constante em suas páginas, que de certo
modo frustra nossas intenções de
decifrá-lo.
A ironia é visível na insistência
com que o narrador engrandece
seu companheiro de viagem, tomando suas frases mais banais
como exemplo de sabedoria.
E também na própria linguagem do narrador, muitas vezes redundante e formal, usando imagens gastas como, por exemplo,
"a fúria do tempo, o açoite implacável da saudade". Ou então: "Eu
não era capaz de calcular a sobrecarga que recai sobre o chefe de
uma empreitada nem de avaliar o
quanto é penoso carregar sobre os
ombros o fardo da responsabilidade".
É como se, na passagem do menino para o homem feito, do laconismo rude e oracular do Mano à
escrita culta e estereotipada do
narrador, a possibilidade de uma
verdadeira comunhão com a natureza e com os homens tivesse se
perdido.
O livro encena uma separação
entre irmãos que é também a separação entre autor e narrador,
entre fala e escrita, entre mito e
ironia; e seu despojamento, sua
falsa simplicidade seriam como
que a tentativa, minada por dentro, de reatar tudo aquilo que,
com o mundo moderno, se rompeu.
À Margem da Linha
Autor: Paulo Rodrigues
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 22 (112 págs.)
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