São Paulo, terça-feira, 13 de novembro de 2001

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CRÍTICA

Realismo da obra provoca estranhamento

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Dois meninos pobres deixam a casa da mãe para seguir os trilhos do trem, à procura do pai. O garoto menor, que teria uns dez anos, é quem conta a história. Está o tempo todo fascinado pelo irmão mais velho, a quem chama simplesmente de Mano.
E isso é tudo, ou quase tudo. A novela de Paulo Rodrigues é tão curta e despojada que é preciso tomar cuidado para não lê-la depressa demais.
Mas a simplicidade de "À Margem da Linha" é resultado de uma estratégia cuidadosa. O autor não explora sentimentalmente o tema (um tanto desgastado) da "procura do pai". Não tenta rechear o livro com ornamentos de estilo. Não investe na análise psicológica nem procura esmiuçar o relacionamento entre os personagens.
Partindo de um cenário realista, o dos arrabaldes de alguma cidadezinha do interior, o livro aos poucos vai produzindo no leitor uma sensação de estranhamento. As estações da linha férrea não têm nome, a paisagem poderia ser a de qualquer lugar, e o narrador tem como companheiro de caminhada apenas esse Mano, de quem sabemos pouco, cada vez menos.
Certamente há algo de "mítico" em "À Margem da Linha", como bem diz Rodrigo Lacerda na orelha do livro. Podemos pensar no contraste entre a perseverança idealista do irmão mais velho e o conformismo algo ingênuo do narrador; ou notar que o livro trata da passagem da meninice para a idade adulta.
O livro ao mesmo tempo admite e refuta interpretações desse tipo. Pode ser lido como uma parábola, mas há também uma corrente de ironia, de desmitificação constante em suas páginas, que de certo modo frustra nossas intenções de decifrá-lo.
A ironia é visível na insistência com que o narrador engrandece seu companheiro de viagem, tomando suas frases mais banais como exemplo de sabedoria.
E também na própria linguagem do narrador, muitas vezes redundante e formal, usando imagens gastas como, por exemplo, "a fúria do tempo, o açoite implacável da saudade". Ou então: "Eu não era capaz de calcular a sobrecarga que recai sobre o chefe de uma empreitada nem de avaliar o quanto é penoso carregar sobre os ombros o fardo da responsabilidade".
É como se, na passagem do menino para o homem feito, do laconismo rude e oracular do Mano à escrita culta e estereotipada do narrador, a possibilidade de uma verdadeira comunhão com a natureza e com os homens tivesse se perdido.
O livro encena uma separação entre irmãos que é também a separação entre autor e narrador, entre fala e escrita, entre mito e ironia; e seu despojamento, sua falsa simplicidade seriam como que a tentativa, minada por dentro, de reatar tudo aquilo que, com o mundo moderno, se rompeu.


À Margem da Linha
    
Autor: Paulo Rodrigues
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 22 (112 págs.)




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