São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 2006

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NELSON ASCHER

Retrato do amor quando jovem


Cabe aos autores ou vender direito os seus livros, ou não atrapalhar quem sabe fazê-lo

DIZIA um escritor argentino que qualquer livro deve ser feito como um relógio e vendido como um salsichão. Diversas são as instâncias que se interpõem entre autor e leitor (editora, livrarias, a crítica etc.) e, em decorrência de decisões boas ou nem tanto, cada qual é capaz de se converter seja numa ponte, seja num obstáculo. Não adianta fazer de conta que vivemos num mundo ideal, onde os melhores produtos da musa e do suor encontrarão, automática e imediatamente, seus consumidores ideais. Fosse assim e, dispensados todos os passos supérfluos, estaríamos nos comunicando não com auxílio de computadores, impressoras, tinta e papel, mas diretamente por telepatia.
Enquanto não se chega a esse estágio, cabe aos autores ou venderem direito seus respectivos salsichões, ou não atrapalhar os intermediários que sabem fazê-lo melhor. Um livro recém-relançado, em formato de bolso, pela Companhia das Letras, ilustra quanto pode sair de errado quando um livro promissor surge com título que, se não afasta, não atrai o grosso do público potencial.
Uma antologia de quatro traduções poéticas, duas longas e duas breves, "Retrato do Amor quando Jovem", que foi originalmente publicada em 1990 pela mesma editora, reunia nada menos que a maior obra de juventude de Dante Alighieri, a "Vida Nova", o mais famoso drama amoroso de William Shakespeare, "Romeu e Julieta", bem como trechos divertidíssimos (graças a seus jogos de palavras) de uma comédia inglesa do século 18 ("Os Rivais", de Richard Sheridan) e o mais escandaloso poema erótico que Goethe, titã das letras alemãs, compôs. De resto, o conjunto fora traduzido para o português, com inspiração e talento, por Décio Pignatari.
Assim, mesmo quem sofresse de aversão prévia à poesia dos concretistas, se devidamente informado acerca do conteúdo do volume, teria talvez se interessado por ele. Acontece que, da capa à lombada, em vez de chamar a atenção para os clássicos traduzidos, a primeira edição enfatizava o nome do tradutor como se fosse ele próprio o autor. Hoje em dia, leitores familiarizados com o extenso e crescente rol de discussões críticas sobre a tradução literária sabem que, a partir de certo nível de competência ou qualidade, o tradutor é não raro visto como autor ou, pelo menos, como alguém que, não menos responsável pelo texto final, seria, como tal, injusto relegar ao segundo plano ou até à invisibilidade.
Tampouco faltam, nos mais variados países e idiomas, traduções de obras estrangeiras (em geral poéticas) que, de tão exemplares e importantes que foram em sua época ou por terem sido realizadas por celebridades locais, transformaram-se, elas mesmas, em clássicos de sua nova pátria e língua. Cita-se, por exemplo, a "Ilíada" de Alexander Pope (não apenas de Homero) na Inglaterra, as "Bucólicas" de Paul Valéry (além de Virgílio) na França, o "Hamlet" de Pasternak (não só de Shakespeare) na Rússia, "O Corvo" de Fernando Pessoa (e de Edgar Allan Poe) em Portugal, e assim por diante. Se tal atribuição se revela justa, nem por isso é o tradutor ou editor que deve fazê-la, pois esse papel pertence ao público e à crítica. Embora em alguns casos o tradutor mereça seu lugar na lombada, também é certo que este não lhe deve ser conferido apressadamente, isto é, sem que o júri tenha antes chegado sozinho a tal conclusão.
Quando as traduções de Pignatari foram inicialmente reunidas, a atribuição precipitada de autoria ao tradutor certamente contribuiu para que seu trabalho não alcançasse todo o público possível e, prejudicando-lhe ainda mais a recepção, é bem provável que um bom número de críticos e leitores distraídos nem sequer soubesse o que é que havia entre ambas as capas. Resultado: algumas das versões mais saborosas de textos conhecidíssimos (se bem que em outras traduções, inferiores) acabaram relegadas ao descaso e levaram uma década e meia para serem republicadas.
Felizmente, nesta nova edição, os mal-entendidos foram corrigidos e as informações, assim como cada peça do conjunto, colocadas no devido lugar. Dante, Shakespeare, Sheridan e Goethe estão, como autores, na capa e na lombada e, quem sabe, por um excesso de zelo corretivo, o tradutor nem aparece nelas. Como o essencial, porém, é que o "salsichão" chegue à mesa dos consumidores, estes e o tempo cuidarão de corrigir a omissão. Graças a sua qualidade tradutória, os poemas reunidos pertencem, igualmente, a Décio Pignatari, cujos méritos serão, afinal, reconhecidos. Sua autoria (ou co-autoria) se patenteará. Porém, não antes do tempo.

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