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NELSON ASCHER
Retrato do amor quando jovem
Cabe aos autores ou
vender direito os seus
livros, ou não atrapalhar
quem sabe fazê-lo
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DIZIA um escritor argentino
que qualquer livro deve ser
feito como um relógio e vendido como um salsichão. Diversas
são as instâncias que se interpõem
entre autor e leitor (editora, livrarias, a crítica etc.) e, em decorrência
de decisões boas ou nem tanto, cada
qual é capaz de se converter seja numa ponte, seja num obstáculo. Não
adianta fazer de conta que vivemos
num mundo ideal, onde os melhores
produtos da musa e do suor encontrarão, automática e imediatamente, seus consumidores ideais. Fosse
assim e, dispensados todos os passos
supérfluos, estaríamos nos comunicando não com auxílio de computadores, impressoras, tinta e papel,
mas diretamente por telepatia.
Enquanto não se chega a esse estágio, cabe aos autores ou venderem
direito seus respectivos salsichões,
ou não atrapalhar os intermediários
que sabem fazê-lo melhor. Um livro
recém-relançado, em formato de
bolso, pela Companhia das Letras,
ilustra quanto pode sair de errado
quando um livro promissor surge
com título que, se não afasta, não
atrai o grosso do público potencial.
Uma antologia de quatro traduções poéticas, duas longas e duas
breves, "Retrato do Amor quando
Jovem", que foi originalmente publicada em 1990 pela mesma editora, reunia nada menos que a maior
obra de juventude de Dante Alighieri, a "Vida Nova", o mais famoso drama amoroso de William Shakespeare, "Romeu e Julieta", bem como
trechos divertidíssimos (graças a
seus jogos de palavras) de uma comédia inglesa do século 18 ("Os Rivais", de Richard Sheridan) e o mais
escandaloso poema erótico que
Goethe, titã das letras alemãs, compôs. De resto, o conjunto fora traduzido para o português, com inspiração e talento, por Décio Pignatari.
Assim, mesmo quem sofresse de
aversão prévia à poesia dos concretistas, se devidamente informado
acerca do conteúdo do volume, teria
talvez se interessado por ele. Acontece que, da capa à lombada, em vez
de chamar a atenção para os clássicos traduzidos, a primeira edição
enfatizava o nome do tradutor como
se fosse ele próprio o autor. Hoje em
dia, leitores familiarizados com o extenso e crescente rol de discussões
críticas sobre a tradução literária sabem que, a partir de certo nível de
competência ou qualidade, o tradutor é não raro visto como autor ou,
pelo menos, como alguém que, não
menos responsável pelo texto final,
seria, como tal, injusto relegar ao segundo plano ou até à invisibilidade.
Tampouco faltam, nos mais variados países e idiomas, traduções de
obras estrangeiras (em geral poéticas) que, de tão exemplares e importantes que foram em sua época ou
por terem sido realizadas por celebridades locais, transformaram-se,
elas mesmas, em clássicos de sua nova pátria e língua. Cita-se, por exemplo, a "Ilíada" de Alexander Pope
(não apenas de Homero) na Inglaterra, as "Bucólicas" de Paul Valéry
(além de Virgílio) na França, o
"Hamlet" de Pasternak (não só de
Shakespeare) na Rússia, "O Corvo"
de Fernando Pessoa (e de Edgar
Allan Poe) em Portugal, e assim por
diante. Se tal atribuição se revela
justa, nem por isso é o tradutor ou
editor que deve fazê-la, pois esse papel pertence ao público e à crítica.
Embora em alguns casos o tradutor
mereça seu lugar na lombada, também é certo que este não lhe deve ser
conferido apressadamente, isto é,
sem que o júri tenha antes chegado
sozinho a tal conclusão.
Quando as traduções de Pignatari
foram inicialmente reunidas, a atribuição precipitada de autoria ao tradutor certamente contribuiu para
que seu trabalho não alcançasse todo o público possível e, prejudicando-lhe ainda mais a recepção, é bem
provável que um bom número de
críticos e leitores distraídos nem sequer soubesse o que é que havia entre ambas as capas. Resultado: algumas das versões mais saborosas de
textos conhecidíssimos (se bem que
em outras traduções, inferiores)
acabaram relegadas ao descaso e levaram uma década e meia para serem republicadas.
Felizmente, nesta nova edição, os
mal-entendidos foram corrigidos e
as informações, assim como cada
peça do conjunto, colocadas no devido lugar. Dante, Shakespeare, Sheridan e Goethe estão, como autores,
na capa e na lombada e, quem sabe,
por um excesso de zelo corretivo, o
tradutor nem aparece nelas. Como o
essencial, porém, é que o "salsichão"
chegue à mesa dos consumidores,
estes e o tempo cuidarão de corrigir
a omissão. Graças a sua qualidade
tradutória, os poemas reunidos pertencem, igualmente, a Décio Pignatari, cujos méritos serão, afinal, reconhecidos. Sua autoria (ou co-autoria) se patenteará. Porém, não antes do tempo.
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