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CRÍTICA ROMANCE
"Catatau" é experiência lúdica com a língua
Obra inovadora de Paulo Leminski cria monólogo onírico do filósofo René Descartes em visita a Pernambuco
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Penso, logo existo", na
França, entre jesuítas, é uma
coisa.
Agora, se Renatus Cartesius -o nome latino e também leminskiano do filósofo
René Descartes (1596-1650)-
quisesse formular esta mesma máxima em Olinda, em
meio à exuberância de uma
floresta tropical e ainda sob o
efeito de alguma erva local, a
frase-mãe do racionalismo
moderno teria provavelmente sido deturpada.
E é mesmo neste espaço
que Paulo Leminski (1944-1989) localiza o pensador.
Membro imaginário da comitiva de Maurício de Nassau (1604-1679) durante sua
estada em Recife, em 1636,
Renatus Cartesius se encontra em Olinda, sob o efeito
ora perturbador, ora esclarecedor da "marijuana", especulando sobre os sentidos da
existência, da natureza e da
matemática.
E é ao longo de um "catatau" linguístico que se desenvolve a narrativa de "Catatau", escrito em 1975 e relançado agora pela editora
Iluminuras.
"Castigo físico, pancada;
falatório, mexerico, intriga;
coisa volumosa ou grande;
porção de qualquer coisa;
carta de baralho em jogo de
truque." "Catatau" cabe em
qualquer uma das acepções
dicionarizadas.
Num jogo extenso e intenso com as possibilidades sintáticas, sonoras, rítmicas e
semânticas da língua, Leminski faz Cartesius, com seu
método de dúvida sistemática, duvidar até de suas poucas certezas.
Metamorfoseado em Pascal, é um Descartes perturbado que diz: "O silêncio eterno
destes seres tortos e loucos
me apavora".
E, numa antecipação ficcional, mas ainda assim profética, que mistura Beckett
(1906-1989) e Oswald de Andrade (1890-1954), o mesmo
Cartesius "fermentado" proclama: "Assim foi feito isso.
Algo fez isso assim, isso ficou
assim. Então era isso. Isso ficou assim e assaz assado, o
erro já está içado. Ficou algo,
deu-se. Isso contra isto".
Misturando ditados, pensamentos filosóficos e matemáticos a personagens históricos, o narrador pede a Deus
e à geometria que o salvem
da "besteira destas bestas,
seus queixos barbados e corpos retorcidos".
Em meio à verdade incontornável da natureza empírica, é como se não restasse
mais espaço para as conjecturas abstratas, científicas;
como se a filosofia precisasse
de distância da natureza para poder pensá-la.
Uma batalha que se trava,
na verdade, entre a Europa e
o Novo Mundo, a teoria e a
prática, a floresta e a luneta
de que Cartesius se vale.
Não se trata de um livro fácil de ler. Nem poderia, pois é
um catatau assumido. Mas
diante dele, quem quer,
quem precisa do fácil?
Como diz o autor ao introduzir o livro: "virem-se".
CATATAU
AUTOR Paulo Leminski
EDITORA Iluminuras
QUANTO R$ 44 (256 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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