São Paulo, sábado, 13 de novembro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

"Catatau" é experiência lúdica com a língua

Obra inovadora de Paulo Leminski cria monólogo onírico do filósofo René Descartes em visita a Pernambuco

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Penso, logo existo", na França, entre jesuítas, é uma coisa.
Agora, se Renatus Cartesius -o nome latino e também leminskiano do filósofo René Descartes (1596-1650)- quisesse formular esta mesma máxima em Olinda, em meio à exuberância de uma floresta tropical e ainda sob o efeito de alguma erva local, a frase-mãe do racionalismo moderno teria provavelmente sido deturpada.
E é mesmo neste espaço que Paulo Leminski (1944-1989) localiza o pensador.
Membro imaginário da comitiva de Maurício de Nassau (1604-1679) durante sua estada em Recife, em 1636, Renatus Cartesius se encontra em Olinda, sob o efeito ora perturbador, ora esclarecedor da "marijuana", especulando sobre os sentidos da existência, da natureza e da matemática.
E é ao longo de um "catatau" linguístico que se desenvolve a narrativa de "Catatau", escrito em 1975 e relançado agora pela editora Iluminuras. "Castigo físico, pancada; falatório, mexerico, intriga; coisa volumosa ou grande; porção de qualquer coisa; carta de baralho em jogo de truque." "Catatau" cabe em qualquer uma das acepções dicionarizadas.
Num jogo extenso e intenso com as possibilidades sintáticas, sonoras, rítmicas e semânticas da língua, Leminski faz Cartesius, com seu método de dúvida sistemática, duvidar até de suas poucas certezas. Metamorfoseado em Pascal, é um Descartes perturbado que diz: "O silêncio eterno destes seres tortos e loucos me apavora".
E, numa antecipação ficcional, mas ainda assim profética, que mistura Beckett (1906-1989) e Oswald de Andrade (1890-1954), o mesmo Cartesius "fermentado" proclama: "Assim foi feito isso.
Algo fez isso assim, isso ficou assim. Então era isso. Isso ficou assim e assaz assado, o erro já está içado. Ficou algo, deu-se. Isso contra isto".
Misturando ditados, pensamentos filosóficos e matemáticos a personagens históricos, o narrador pede a Deus e à geometria que o salvem da "besteira destas bestas, seus queixos barbados e corpos retorcidos".
Em meio à verdade incontornável da natureza empírica, é como se não restasse mais espaço para as conjecturas abstratas, científicas; como se a filosofia precisasse de distância da natureza para poder pensá-la.
Uma batalha que se trava, na verdade, entre a Europa e o Novo Mundo, a teoria e a prática, a floresta e a luneta de que Cartesius se vale. Não se trata de um livro fácil de ler. Nem poderia, pois é um catatau assumido. Mas diante dele, quem quer, quem precisa do fácil? Como diz o autor ao introduzir o livro: "virem-se".

CATATAU

AUTOR Paulo Leminski
EDITORA Iluminuras
QUANTO R$ 44 (256 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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