São Paulo, sexta, 13 de novembro de 1998

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CRÍTICA
"Coração Iluminado" tem a poesia do imperfeito

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Logo no início de "Coração Iluminado", Juan, o protagonista, pergunta ao velho fotógrafo Jacobo como se faz para ser diretor de cinema. E Jacobo responde algo como: "Saber contar histórias. E viver."
A frase -em princípio óbvia- soa como uma espécie de autodefinição do que seja o cinema por Hector Babenco, em que a postura clássica e a simplicidade narrativa são aspectos dominantes.
Essa autodefinição completa-se com a exibição de trechos de "Jules e Jim", de François Truffaut, o que acrescenta às características anteriores sensibilidade moderna, coloquialidade e -sobretudo em se tratando desse filme- abertura para a audácia, a imperfeição, o amadorismo.
Sabe-se que Truffaut, mesmo depois que dominava a técnica cinematográfica à perfeição, gostava de deixar uma marca de precariedade, de amadorismo, em seus trabalhos. Nessa "sujeira" inscrevia-se mais ou menos o que Jacobo chamava de "viver": algo que a técnica, os altos orçamentos, os atores impecáveis não conseguem abarcar, mas de onde tantas vezes surge, misteriosamente, a poesia dos filmes.
É bem nesse caso que se encontra "Coração Iluminado". É o mais audacioso, o mais poético e, portanto, o mais belo dos filmes de Hector Babenco.
² Aura
Do que fala? De praticamente nada, a não ser de um grupo de visionários de Buenos Aires dispostos a fotografar a alma humana, literalmente.
Nas tentativas a que se dedicam, sob o comando de Jacobo, a "iluminada" do grupo é Ana (Maria Luisa Mendonça). Sua aura é a única captável pela câmera.
Ana é uma garota que mantém relações turbulentas com o mundo real. É louca, segundo a família, e despertará em Juan (interpretado por Walter Quiróz) um amor também louco.
À parte o relato de um belo caso de amor, dominado pelo sofrimento que Ana experimenta diante das coisas (mas também pela revelação de Maria Luisa Mendonça, soberba, para o cinema), essa primeira parte do filme define Juan como um "caçador de auras", que é outra forma de definir o narrador clássico.
Na segunda parte, Juan é um cineasta famoso que vive em Los Angeles e volta 20 anos mais velho (interpretado por Miguel Angel Solá) a Buenos Aires, para acompanhar a morte do pai.
Ainda uma vez, no entanto, se deixará levar pela busca por uma mulher misteriosa (Xuxa Lopes) e aparentemente dotada do mesmo coração iluminado que Ana revelara na primeira parte do filme.
² Parte menos interessante
É verdade que na segunda parte as soluções são menos interessantes que na primeira, ao menos à primeira vista. Juan passa a ser o centro dos acontecimentos e mostra-se um tanto vago para ser o condutor da história.
No mais, a superposição de Lilith -a segunda mulher- e Ana -a primeira- quase lança o filme no registro do fantástico, no qual Babenco parece se sentir menos à vontade do que no realismo estrito (não por acaso, a sequência mais forte da parte final do filme é a do reencontro de Juan com um velho companheiro do grupo de caçadores de auras).
² Coerência intacta
De todo modo, a coerência da narrativa mantém-se intacta, e mesmo o final enigmático -uma audácia para os padrões contemporâneos, em que a maior parte dos espectadores exige soluções sempre claras- aponta para a tensão, existente ao longo do filme, entre o ficcionista e suas personagens.
Ainda uma vez, Babenco sente-se compelido a dar destaque a estas últimas. São elas os seres excepcionais, a quem o ficcionista existe apenas para servir.
Ele, em si, é um homem banal, cuja existência só se justifica pela possibilidade de trazer à luz seres excepcionais. E fazer um filme, para Babenco, talvez seja isso: captar esses seres. Concluir a tarefa, porém, equivale a matá-los.
Falei no princípio dos defeitos poéticos de um filme. O truncamento da primeira história, os desequilíbrios da segunda parte talvez estejam nessa categoria. Nunca, como aqui, Babenco cultivou tão carinhosamente esses defeitos, como a dizer que, se a vida é tão absurdamente imperfeita, como poderia um filme aspirar à perfeição sem flertar com a nulidade?
Tudo o que pode recolher são flashes, fragmentos de um absoluto que o humano persegue. Nunca, antes, Hector Babenco falara com tanta desenvoltura, ao mesmo tempo, sobre a vida e o cinema, o que os liga e os separa, sua doçura e amargor, razão e insânia, mínimo e magnífico.
"Coração Iluminado" é um chamamento à vida, enfim, num mundo de coisas mortas. O que se pode pedir mais?
²
Filme: Coração Iluminado Produção: Brasil/Argentina, 1998 Direção: Hector Babenco Com: Xuxa Lopes, Maria Luisa Mendonça, Miguel Angel Solá, Walter Quiróz Quando: a partir de hoje nos cinemas SP Market 10, Morumbi 6, Belas Artes-Cândido Portinari, Espaço Unibanco 3 e circuito



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