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CRÍTICA
"Coração Iluminado" tem a poesia do imperfeito
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Logo no início de "Coração Iluminado", Juan, o protagonista,
pergunta ao velho fotógrafo Jacobo como se faz para ser diretor de
cinema. E Jacobo responde algo
como: "Saber contar histórias. E
viver."
A frase -em princípio óbvia-
soa como uma espécie de autodefinição do que seja o cinema por
Hector Babenco, em que a postura
clássica e a simplicidade narrativa
são aspectos dominantes.
Essa autodefinição completa-se
com a exibição de trechos de "Jules
e Jim", de François Truffaut, o que
acrescenta às características anteriores sensibilidade moderna, coloquialidade e -sobretudo em se
tratando desse filme- abertura
para a audácia, a imperfeição, o
amadorismo.
Sabe-se que Truffaut, mesmo depois que dominava a técnica cinematográfica à perfeição, gostava de
deixar uma marca de precariedade, de amadorismo, em seus trabalhos. Nessa "sujeira" inscrevia-se
mais ou menos o que Jacobo chamava de "viver": algo que a técnica, os altos orçamentos, os atores
impecáveis não conseguem abarcar, mas de onde tantas vezes surge, misteriosamente, a poesia dos
filmes.
É bem nesse caso que se encontra
"Coração Iluminado". É o mais audacioso, o mais poético e, portanto, o mais belo dos filmes de Hector Babenco.
²
Aura
Do que fala? De praticamente nada, a não ser de um grupo de visionários de Buenos Aires dispostos a
fotografar a alma humana, literalmente.
Nas tentativas a que se dedicam,
sob o comando de Jacobo, a "iluminada" do grupo é Ana (Maria
Luisa Mendonça). Sua aura é a única captável pela câmera.
Ana é uma garota que mantém
relações turbulentas com o mundo
real. É louca, segundo a família, e
despertará em Juan (interpretado
por Walter Quiróz) um amor também louco.
À parte o relato de um belo caso
de amor, dominado pelo sofrimento que Ana experimenta diante das coisas (mas também pela revelação de Maria Luisa Mendonça,
soberba, para o cinema), essa primeira parte do filme define Juan
como um "caçador de auras", que
é outra forma de definir o narrador
clássico.
Na segunda parte, Juan é um cineasta famoso que vive em Los Angeles e volta 20 anos mais velho
(interpretado por Miguel Angel
Solá) a Buenos Aires, para acompanhar a morte do pai.
Ainda uma vez, no entanto, se
deixará levar pela busca por uma
mulher misteriosa (Xuxa Lopes) e
aparentemente dotada do mesmo
coração iluminado que Ana revelara na primeira parte do filme.
²
Parte menos interessante
É verdade que na segunda parte
as soluções são menos interessantes que na primeira, ao menos à
primeira vista. Juan passa a ser o
centro dos acontecimentos e mostra-se um tanto vago para ser o
condutor da história.
No mais, a superposição de Lilith
-a segunda mulher- e Ana -a
primeira- quase lança o filme no
registro do fantástico, no qual Babenco parece se sentir menos à
vontade do que no realismo estrito
(não por acaso, a sequência mais
forte da parte final do filme é a do
reencontro de Juan com um velho
companheiro do grupo de caçadores de auras).
²
Coerência intacta
De todo modo, a coerência da
narrativa mantém-se intacta, e
mesmo o final enigmático -uma
audácia para os padrões contemporâneos, em que a maior parte
dos espectadores exige soluções
sempre claras- aponta para a tensão, existente ao longo do filme,
entre o ficcionista e suas personagens.
Ainda uma vez, Babenco sente-se
compelido a dar destaque a estas
últimas. São elas os seres excepcionais, a quem o ficcionista existe
apenas para servir.
Ele, em si, é um homem banal,
cuja existência só se justifica pela
possibilidade de trazer à luz seres
excepcionais. E fazer um filme, para Babenco, talvez seja isso: captar
esses seres. Concluir a tarefa, porém, equivale a matá-los.
Falei no princípio dos defeitos
poéticos de um filme. O truncamento da primeira história, os desequilíbrios da segunda parte talvez estejam nessa categoria. Nunca, como aqui, Babenco cultivou
tão carinhosamente esses defeitos,
como a dizer que, se a vida é tão absurdamente imperfeita, como poderia um filme aspirar à perfeição
sem flertar com a nulidade?
Tudo o que pode recolher são
flashes, fragmentos de um absoluto que o humano persegue. Nunca,
antes, Hector Babenco falara com
tanta desenvoltura, ao mesmo
tempo, sobre a vida e o cinema, o
que os liga e os separa, sua doçura e
amargor, razão e insânia, mínimo
e magnífico.
"Coração Iluminado" é um chamamento à vida, enfim, num mundo de coisas mortas. O que se pode
pedir mais?
²
Filme: Coração Iluminado
Produção: Brasil/Argentina, 1998
Direção: Hector Babenco
Com: Xuxa Lopes, Maria Luisa Mendonça,
Miguel Angel Solá, Walter Quiróz
Quando: a partir de hoje nos cinemas SP
Market 10, Morumbi 6, Belas Artes-Cândido
Portinari, Espaço Unibanco 3 e circuito
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