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CONTARDO CALLIGARIS
Assanhados ou toxicômanos
Sábado passado, em Nova
York, parei no meio da Times
Square -o templo do outdoor.
Algo parecia inusitado. Com a exceção de uma cueca da Calvin
Klein que moldava a protuberância esperada e delimitava abdominais de estátua renascentista,
não apareciam corpos (nem fragmentos de corpos).
Fui folhear revistas. Claro, encontrei uma propaganda da Air
France em que um avião corta as
costas sinuosas de uma mulher
-no estilo do atentado contra as
torres gêmeas. E havia Água Brava perfumando cenas de praia
que estavam entre James-Bond-pegando-a-moça e as fotos que tiramos nas últimas férias, com o
jet-ski alugado. Mas eram exceções -pareciam coisas de um outro tempo. A maioria dos anúncios apresentava objetos, produtos e serviços sem conúbios eróticos: os carros na estrada, os aparelhos eletrônicos em cima de mesas quase abstratas.
Quinze dias atrás, nesta coluna,
fiz algumas considerações sobre o
uso assíduo dos corpos nas imagens com as quais a publicidade
colore nosso dia-a-dia. Mas eis
que a Times Square e as páginas
das revistas parecem indicar uma
tendência diferente. Aparentemente, a propaganda que me surpreendeu não está querendo excitar nossa insatisfação e estimular
nosso desejo. Nem está nos prometendo que os objetos nos tornarão mais desejáveis do que nossos
semelhantes.
Essa "nova" propaganda não
cultiva o desejo. Com isso, nas revistas, o mundo do desejo passa a
coincidir com o universo tragicômico e vulgar das notícias. Lá imperam as paixões assassinas que
decidem os assaltos, os atentados
e as guerras. Lá reinam a cobiça
dos corruptos e o cabritismo ao
redor da gravidez de Gloria Trevi.
O desejo é o carburante da feiúra
do mundo. Por isso, nas revistas,
tantas matérias sobre bem-estar,
paz e saúde substituem a sujeira
do noticiário -para oferecer aos
leitores um pouco do mesmo
mundo que se afirma nas páginas
da "nova" propaganda: um mundo tranquilo e equilibrado, desinfetado de desejo.
Nesse mundo, o carro, por
exemplo, não é mais um instrumento de sedução nem de competição. Ele traz sonhos de segurança mais do que de potência. Ou,
então, aparece como o símbolo de
uma precisão e de uma harmonia
mecânicas que gostaríamos de
transferir para nossas vidas e para nossos cérebros. Ou, ainda, ele
é o veículo para uma viagem propriamente espiritual. Achei uma
única propaganda de carro em
que aparecem corpos: a da Peugeot 208, com três jovens nadadoras preparando-se para a largada. Ou seja, nada de sexo: uma
imagem de concentração, graça e
autocontrole.
O novo tom publicitário triunfa
nas propagandas das instituições
financeiras. A Investa mostra um
esqueleto humano (raios X de
perfil), para lembrar que é bom
"estar em forma por dentro", e
não só por fora. O cliente do cartão Bradesco mantém o poste de
sua agência bancária sobre a palma da mão. Juntando os dois,
chega-se à formula do momento:
o que importa é encontrar o equilíbrio mais íntimo. Uma propaganda do Itaú resume essa exigência: o que o cliente pode querer de uma boa estratégia de investimento não é (como num passado vulgar) o acesso a mais bens,
mas uma forma muito especial de
felicidade -um momento de meditação, de olhos fechados, na posição do Buda.
A promessa clássica da propaganda dizia que, se soubéssemos
desejar coisas sem parar, conseguiríamos ser nós mesmos desejáveis e competitivos. Hoje, ouço
uma promessa diferente: vocês
não precisam continuar nessa
procura insaciável. Encontrem os
objetos ou os serviços certos e descansarão em harmonia consigo
mesmos e com o mundo.
Se fosse otimista, festejaria. Em
vez de venerar os objetos que excitam nossos desejos, procuraremos
aqueles que nos apaziguam. Não
é uma maneira mais sábia de correr atrás da felicidade?
Pois bem, não sou otimista. Não
sei se estamos mudando para melhor. Certo, nossa cultura funciona, mas tem um custo muito alto.
Ela exige, por exemplo, a insatisfação crônica de todos nós. Não
seria mau, portanto, se nos encaminhássemos para uma época em
que estaria na moda acalmar o
desejo, suspender a insatisfação.
Mas duvido de que o modelo de
acalmia proposto pela propaganda destes dias seja mesmo o da
meditação zen-budista.
É mais provável que a mudança
seja esta: o modelo de nosso consumo está passando do erotismo
para a toxicomania. Deixamos de
ser consumidores assanhados para nos tornar consumidores toxicômanos. Nosso objeto por excelência não seria mais o corpo desejado em mil fantasias fracassadas e sempre insatisfeitas, mas a
droga, em todas as suas formas,
legais e ilegais. Ou seja, não um
objeto que alimenta (incômodos)
anseios, mas um objeto que promete, no mínimo, trégua.
Infelizmente, como acontece
com a droga, a trégua é aparente.
E o ideal de contentamento e
equilíbrio é mais uma maneira de
alimentar (e piorar) a frustração
de sempre -uma maneira provavelmente menos interessante
do que os atrapalhos do desejo.
P.S.: Na semana passada, por
um acidente técnico, muitos e-mails de leitores foram perdidos.
Peço vênia.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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