São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Só verdades, só mentiras

Saber que Pinochet equilibrou as contas do Chile não o absolve; ele é uma verdade e uma mentira

PINOCHET MORREU em Santiago do Chile e, nos dias seguintes, lembrei de uma campanha publicitária desta Folha que fez sucesso, anos atrás, nos certames internacionais. Vocês conhecem o filme: um ponto preto na tela da TV; lentamente, centenas de pontos, que vão revelando as feições de um rosto; uma voz em "off" que explica: "Este homem pegou uma nação destruída, recuperou a sua economia, devolveu orgulho ao seu povo". E os pontos pretos, milhares, são agora o rosto de Hitler.
A campanha escolheu Hitler, mas poderia ter escolhido qualquer outro ditador: Stálin, por exemplo, na sua brutal tirania, ergueu um país industrializado e temido, cientificamente avançado e com vocação imperial, que muitos russos ainda recordam com saudade. Porque a lição dessa campanha ensina precisamente isso: é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Ou, inversamente, é possível contar um monte de verdades dizendo só a mentira.
Pinochet, como qualquer criminoso histórico, é uma verdade e uma mentira: imaginando milhares de pontos pretos com o rosto do general, de preferência com a pose e os óculos de 1973, sabemos que o homem salvou o Chile do comunismo e da esquerda revolucionária que Allende não queria, ou não podia, controlar; sabemos que Pinochet herdou um país falido, com inflação de três dígitos e sua capacidade produtiva destruída; e sabemos que Pinochet transformou o Chile na mais vibrante economia da América Latina.
Infelizmente para os defensores do general, que voltaram a relembrar essas verdades como justificação póstuma do seu reinado (1973-1989), a balança comercial não desculpa ou legitima o terror, a morte e a tortura de milhares de seres humanos. E a evocação de um sucesso econômico, por mais estrondoso que seja, deveria ser um fato repulsivo para qualquer liberal: falo, evidentemente, daqueles liberais clássicos que leram a "Riqueza das Nações", de Adam Smith, mas não esqueceram o livro anterior do escocês: um tratado moral, intitulado precisamente "Teoria dos Sentimentos Morais", e onde se condenam os "homens do sistema": aqueles que procuram desculpar os seus crimes com a alegada beleza de uma teoria qualquer.
Saber que Pinochet equilibrou as contas do país não o absolve como criminoso. Saber que, em 1980, a maioria dos chilenos votou em referendo (o primeiro) aprovando a continuidade do general, não absolve o Chile. E saber que, ao contrário de Fidel, que matou dez vezes mais e morrerá pateticamente agarrado ao poder, Pinochet prescindiu dele em 1989 (em novo referendo), eis um pormenor que não ilude a moral dessa história: os ensinamentos da "Escola de Chicago", se aplicados com violência e tirania, não se distinguem das cartilhas igualitárias e sanguinárias com que a esquerda normalmente desculpa os crimes dos seus próprios torturadores.
Seria bom que a direita não seguisse maus exemplos. Pinochet não deixará saudades.


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