São Paulo, quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

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NINA HORTA

O buraco negro das comidas

Se num casamento de arromba aparecer uma salada russa com camarões, fim do bufê

TEM UM livro que começa assim: "Há lugares no mundo onde as pessoas desaparecem". Eu juntaria "e as comidas também". As pessoas não só morrem ou ficam velhas, mas, por muitos motivos, somem no buraco negro. Desaparecimento não é só morrer, é também distanciamento. Entre pais e filhos, homens e mulheres, diferenças de classes. E filho em crise de adolescência que some na nossa frente? Onde está o menino risonho e companheiro?
O assunto dá medo, mas, felizmente, no mundo da gastronomia nada é muito importante. No mundo da comida, ao contrário, tudo é importantíssimo.
Com tudo isso, queria chegar ao buraco fundo em que somem algumas comidas, alguns, ingredientes, alguns preparos. Aquelas comidas que desapareceram das nossas mesas por muitos motivos, mudança de região, de país, de bairro, de status até.
Não esqueço nunca de um filme (quero dizer, esqueço sem parar, daqui a um ano já não vai restar nada). É "Wall Street", com o Michael Douglas, quando vai trabalhar na Bolsa dos 80 e começa a ficar rico. A primeira coisa que o patrão fez foi levá-lo a um restaurante estrelado.
Olha o menu, indeciso, e o patrão escolhe para ele um tartare de carne crua com um ovo cru no meio. Era o primeiro salto de status, justamente com a comida. O pai o visita, vê a máquina de fazer sushi, o próprio sushi, e o filho tem vergonha dele, e ele se envergonha frente ao filho. O distanciamento real foi provocado pela comida -pelo mais real de tudo. No fim do filme, Michael Douglas, curado das ilusões da Bolsa, e o pai comem uma pizza com as mãos e bebem cerveja no gargalo, felizes.
E, atualmente, com as tendências novas, você, eu e o tal de gourmet que só pensa neste assunto pode estar afastado do próprio vizinho da frente. Se ele entra na sua casa para uma comidinha de todo dia e dá de cara com um arroz tailandês, um curry de castanhas, um lassi de coalhada refrescante e geladinho e um chutney de manga, com certeza vai ter dor de barriga e nunca mais põe o pé na soleira da porta para comer. Estabeleceu-se o fosso. Agora as coisas estão meio complicadas porque, do mesmo modo que as comidas desapareciam no buraco escuro, estão aparecendo no outro lado do túnel.
Vamos lembrar de coisas tão comidas nos anos 60 e que não poderiam ser tão ruins assim, para nos arrepiarmos de horror só de pensar nelas? Salada russa, com maionese feita em casa, batida num prato fundo, assistindo na TV "Donas de Casa Desesperadas".
E a batata cortada em cubinhos, um bom presunto, idem, ervilhas frescas, acho que até esqueci a receita. Levava salsão e nozes ou esta é a Waldorf? Não importa. As duas são boas. E se num casamento destes de arromba aparecer uma gigantesca salada russa com camarões em cascata? Fim do bufê e dos noivos até o final dos tempos.
Lillian Hellman, no fim da vida, morava em Martha's Vineyard, um dos lugares mais esnobes para veraneio, com seu companheiro, Peter Feibleman, que também adorava cozinhar. Um dia, os convidados já batendo à porta, Peter fez uma flor de tomate para enfeitar o arroz. Lillian arrancou e esmigalhou rapidamente a flor, comentando entredentes: "Não seja burro, essa flor pode nos cortar do calendário social por toda a temporada..."
E o estrogonofe?
Ele e o mico-leão-dourado. Em extinção. No escondido da copa, as crianças ainda o adoram, com arroz branco e batatinha palha.
É um assunto sem fim. Imaginei que citaria umas 50 receitas e ingredientes desaparecidos no nada. Não deu. Vamos pensando em outros escondidos no buraco negro preparando o bote.


ninahorta@uol.com.br

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