|
Texto Anterior | Índice
NINA HORTA
O buraco negro das comidas
Se num casamento de arromba aparecer uma salada russa com camarões, fim do bufê
TEM UM livro que começa assim: "Há lugares no mundo
onde as pessoas desaparecem". Eu juntaria "e as comidas
também". As pessoas não só morrem ou ficam velhas, mas, por muitos motivos, somem no buraco negro. Desaparecimento não é só morrer, é também distanciamento. Entre pais e filhos, homens e mulheres,
diferenças de classes. E filho em
crise de adolescência que some na
nossa frente? Onde está o menino
risonho e companheiro?
O assunto dá medo, mas, felizmente, no mundo da gastronomia
nada é muito importante. No mundo da comida, ao contrário, tudo é
importantíssimo.
Com tudo isso, queria chegar ao
buraco fundo em que somem
algumas comidas, alguns, ingredientes, alguns preparos. Aquelas comidas que desapareceram das nossas
mesas por muitos motivos, mudança de região, de país, de bairro,
de status até.
Não esqueço nunca de um filme
(quero dizer, esqueço sem parar, daqui a um ano já não vai restar nada).
É "Wall Street", com o Michael Douglas, quando vai trabalhar na Bolsa
dos 80 e começa a ficar rico. A primeira coisa que o patrão fez foi levá-lo a um restaurante estrelado.
Olha o menu, indeciso, e o patrão
escolhe para ele um tartare de carne
crua com um ovo cru no meio. Era o
primeiro salto de status, justamente
com a comida. O pai o visita, vê a máquina de fazer sushi, o próprio sushi,
e o filho tem vergonha dele, e ele se
envergonha frente ao filho. O distanciamento real foi provocado pela
comida -pelo mais real de tudo. No
fim do filme, Michael Douglas, curado das ilusões da Bolsa, e o pai comem uma pizza com as mãos e bebem cerveja no gargalo, felizes.
E, atualmente, com as tendências
novas, você, eu e o tal de gourmet
que só pensa neste assunto pode estar afastado do próprio vizinho da
frente. Se ele entra na sua casa para
uma comidinha de todo dia e dá de
cara com um arroz tailandês, um
curry de castanhas, um lassi de coalhada refrescante e geladinho e um
chutney de manga, com certeza vai
ter dor de barriga e nunca mais põe o
pé na soleira da porta para comer.
Estabeleceu-se o fosso. Agora as coisas estão meio complicadas porque,
do mesmo modo que as comidas desapareciam no buraco escuro, estão
aparecendo no outro lado do túnel.
Vamos lembrar de coisas tão comidas nos anos 60 e que não poderiam ser tão ruins assim, para nos
arrepiarmos de horror só de pensar
nelas? Salada russa, com maionese
feita em casa, batida num prato fundo, assistindo na TV "Donas de Casa
Desesperadas".
E a batata cortada em cubinhos,
um bom presunto, idem, ervilhas
frescas, acho que até esqueci a receita. Levava salsão e nozes ou esta é a
Waldorf? Não importa. As duas são
boas. E se num casamento destes de
arromba aparecer uma gigantesca
salada russa com camarões em cascata? Fim do bufê e dos noivos até o
final dos tempos.
Lillian Hellman, no fim da vida,
morava em Martha's Vineyard, um
dos lugares mais esnobes para veraneio, com seu companheiro, Peter
Feibleman, que também adorava
cozinhar. Um dia, os convidados já
batendo à porta, Peter fez uma flor
de tomate para enfeitar o arroz. Lillian arrancou e esmigalhou rapidamente a flor, comentando entredentes: "Não seja burro, essa flor pode
nos cortar do calendário social por
toda a temporada..."
E o estrogonofe?
Ele e o mico-leão-dourado. Em
extinção. No escondido da copa, as
crianças ainda o adoram, com arroz
branco e batatinha palha.
É um assunto sem fim. Imaginei
que citaria umas 50 receitas e ingredientes desaparecidos no nada. Não
deu. Vamos pensando em outros escondidos no buraco negro preparando o bote.
ninahorta@uol.com.br
Texto Anterior: Bebida: Nova linha tem tintos do Douro, Dão e Alentejo Índice
|