São Paulo, Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2000


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CINEMA ESTRÉIAS
"Velvet Goldmine" faz síntese à altura do "glam rock"

ANDRÉ BARCINSKI
especial para a Folha

Finalmente um filme sobre rock feito por quem entende de rock. "Velvet Goldmine", de Todd Haynes, é o filme que o "glam rock" merecia: subversivo, esperto e com uma trilha sonora matadora.
Que ninguém vá ao cinema esperando ver um documentário sobre David Bowie, T-Rex, Roxy Music e todos os outros grandes nomes da era "glam". Haynes é arrojado demais para apelar à simplicidade.
É, afinal de contas, o diretor que fez "Safe", um dos melhores filmes dos últimos anos, em que uma dona-de-casa americana começa a sofrer de alergia à vida moderna; fez também "The Karen Carpenter Story", um pseudodocumentário sobre a cantora do grupo pop Carpenters, em que todos os personagens eram bonecas Barbie. Todd Haynes não é qualquer um; o convencional não é o seu forte.
Simplificando muito, pode-se dizer que "Velvet Goldmine" é a história do "glam rock" contada de uma maneira bem particular. O "glam" (o nome vem de "glamour") foi um movimento musical que abalou o rock no início dos anos 70. Seus principais artífices -Bowie, Marc Bolan (do T-Rex) e o Roxy Music- criaram uma música escapista que ia na contramão dos ideais hippies.
Se a filosofia de paz e amor dos hippies era uma reação à realidade vigente, o "glam" ia além: pregava a criação de uma outra realidade, de um mundo andrógino, hedonista, pansexual e libertário, um mundo sem doutrinas ou regras. Valia tudo, homem com homem, mulher com mulher, qualquer coisa.
O "glam" criou seu próprio universo. Nada de política ou manifestos; a música falava agora de discos voadores, de viagens cósmicas, de futurismo niilista à "Laranja Mecânica", de deuses de plástico criados com o único objetivo de serem adorados. David Bowie, o buda do "glam", encarnou este deus artificial, Ziggy Stardust, o personagem andrógino que interpretava no palco (e fora dele).
"Velvet Goldmine" é, grosso modo, a história de David Bowie. O próprio Bowie foi convidado a participar do filme, mas se recusou. Também não permitiu que suas músicas fossem incluídas na trilha sonora (curiosamente, o nome "Velvet Goldmine", título de uma canção de Bowie, não estava registrado, então foi usado).
Mas seria pouco relegar o filme a uma simples cinebiografia: o que Todd Haynes conseguiu foi condensar em duas horas toda a mágica e audácia do "glam rock". Todos os grandes personagens daquela época estão lá, ligeiramente modificados e com outros nomes (veja quadro ao lado). Dá para identificar facilmente David Bowie, Iggy Pop, Lou Reed, Tony DeFries, Marc Bolan e muitos outros. Qualquer fã e conhecedor do gênero vai se deliciar adivinhando as referências, os personagens e agitadores do mundo "glam".
O visual de "Velvet Goldmine" é uma estranha colagem de musical da Broadway e "Rocky Horror Picture Show". Há também semelhanças com filmes como "Performance" e o já citado "Laranja Mecânica".
A estrutura narrativa é copiada de "Cidadão Kane": um repórter (Christian Bale) investiga o sumiço de um astro do rock, Brian Slade (Jonathan Rhys Meyers), personagem obviamente inspirado em David Bowie. Entrevistando amigos e parceiros do cantor, como a ex-mulher Mandy (Toni Collette, de "O Casamento de Muriel") e o roqueiro Curt Wild (Ewan McGregor, de "Trainspotting", fazendo um xerox de Iggy Pop), o jornalista reconstrói a trajetória do astro.
Haynes incorporou ao filme uma estética puramente "glam", exagerada e kitsch. Como as melhores músicas do gênero, o filme é contado como se fosse um sonho, em sequências fragmentadas, sem ordem temporal dos fatos. "Velvet Goldmine" é um videoclipe gigante, uma declaração de amor ao "glam rock" e a uma época de quebra de barreiras morais e de comportamento.
Embora audacioso ao assumir o panfletarismo gay (Haynes é um aguerrido ativista de causas homossexuais), o filme tem um lado ingênuo e inocente, que é também sua maior qualidade.
Há uma cena linda na qual o jornalista volta dez anos no tempo e se vê sozinho no quarto, abrindo o disco que acabou de comprar e colocando o vinil delicadamente na vitrola. É uma experiência religiosa: o garoto sabe que aquele pedaço de plástico vai, de alguma forma, mudar sua vida. E quem já não viveu experiência semelhante? Todd Haynes entende que a idolatria juvenil não é sinônimo de alienação, mas uma válvula de escape, uma fuga.
Se a maior qualidade da boa música é transportar-nos para um lugar melhor, "Velvet Goldmine" faz sua parte, e nos leva a uma época em que um acorde de guitarra tinha o poder de mudar o mundo.


Avaliação:     

Filme: Velvet Goldmine (Velvet Goldmine) Diretor: Todd Haynes Produção: Inglaterra, 1998 Com: Ewan McGregor, Jonathan Rhys Meyers, Christian Bale, Toni Collette Onde: a partir de hoje, nos cines Espaço Unibanco 1 e Pátio Higienópolis 4

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