São Paulo, terça-feira, 14 de janeiro de 2003

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ARTES PLÁSTICAS

Apesar da instabilidade econômica, cresce interesse por obras, e galeristas comemoram resultados de 2002

Crise é mecenas para artistas argentinos

MARCELO BILLI
DE BUENOS AIRES

Juanito Laguna não tem mais de 12 anos e vive no que os argentinos chamam de "villa miseria" -para os brasileiros, uma favela. Entre outubro e novembro do ano passado, mais de 100 mil argentinos visitaram o Centro Cultural Recoleta, um dos importantes espaços de exposição argentinos, para ver quadros que retratam Juanito.
Foi uma das últimas grandes exposições do ano. Eram 24 quadros do consagrado pintor argentino Antonio Berni (1905-1981), que criara o personagem Juanito para retratar as crianças pobres da Argentina. Berni pintou Juanito quando os argentinos, principalmente os moradores de Buenos Aires, acreditavam viver na "Paris da América Latina".
Dois meses de exposição e Berni acabou sendo apelidado de "o pintor dos cartoneiros". Cartoneiro, na Argentina, é quem vive de recolher papel e papelão nas ruas. Poucos se davam conta da sua existência até que milhares de desempregados invadiram as ruas da capital argentina no último ano para ganhar a vida vendendo papelão.
"Os argentinos descobriram os cartoneiros e, de alguma maneira, redescobriram a arte argentina em 2002", diz Ana Maria Battistozzi, crítica de arte e organizadora do evento "Estúdio Aberto", para explicar a efervescência cultural em um ano em que a economia do país ruiu, e não poucos falaram em guerra civil. Durante os dois finais de semana do evento organizado por ela, 200 artistas argentinos abriram seus estúdios ao público. Mais de 40 mil pessoas participaram dos eventos.
A crise, os cartoneiros, os piquetes em estradas e avenidas de Buenos Aires estão em muitas obras. "Nós argentinos sempre tentamos achar uma explicação para tudo. A minha explicação para todo este interesse é que, depois que a classe média argentina se viu espoliada de tudo, de emprego, de suas poupanças, de sua qualidade de vida, acabou se refugiando na arte e nas manifestações culturais", diz Battistozzi.

Paradoxo
A economia argentina encolheu, e metade dos argentinos está subempregada ou desempregada. Ainda assim, a Associação dos Donos de Galerias de Buenos Aires comemora os bons resultados do ano passado. Foi a primeira vez, diz o presidente da instituição, Álvaro Castagnino, que o país atravessou uma crise grave sem que fossem afetadas as vendas de obras de arte.
Parte do sucesso os economistas explicam: os preços das obras caíram. A moeda argentina, até o início de 2001, era atrelada ao dólar, e uma obra de 1.000 pesos era vendida por US$ 1.000. Hoje, seria possível comprar a mesma obra por menos de US$ 400. Outra explicação de economista: os argentinos que antes compravam caras reproduções de obras européias, hoje se voltam para os jovens artistas do país, com obras mais baratas.
Mas o dinheiro não explica tudo, diz Battistozzi. Há um vivo interesse dos argentinos para entender o que ocorreu com o país. As artes visuais foram, por enquanto, um dos refúgios mais procurados. Os artistas responderam. Prova do interesse? Um dos mais tradicionais colecionadores argentinos, o empresário Mauro Herlitzca, comprou, para espanto dos que o consideravam um colecionador "conservador", vários trabalhos que retratavam os "piqueteiros", grupos de desempregados que bloqueiam as estradas argentinas para exigir emprego e subsídios do governo argentino.
Os artistas também se esforçam para vender. Em dezembro, mais de mil artistas se reuniram e fizeram uma verdadeira liquidação. Organizaram um "Outlet das Artes" e colocaram à venda mais de 3 mil obras, muitas com "descontos de mais de 50%".

Recursos escassos
"Há uma grande energia alimentando as artes visuais argentinas. O problema é que a cultura não se alimenta só de energia, precisamos de investimentos", ressalva Battistozzi. Monica Poggi, assistente do Museu de Arte Moderna de Buenos Aires, sente na pele, hoje, o problema que Battistozzi prevê para o futuro.
O governo argentino está virtualmente quebrado, e, por extensão, o museu também. Os funcionários só receberão salário, na melhor das hipóteses, em abril. Por enquanto, o museu vive da "energia" de artistas e doadores particulares. A maioria das obras do acervo em exibição é de jovens artistas que as doaram numa espécie de "operação solidária".
Estão no museu vários trabalhos da fotógrafa Fabiana Barreda, 35. Uma réplica, feita de açúcar, da Casa Rosada, sede do governo argentino. E quatro fotos, nas quais enormes dinossauros ameaçam destruir o prédio.
As fotos ficaram prontas poucos dias depois de 20 de dezembro, aniversário de um ano do que os argentinos chamam de "argentinaço", quando a classe média, batendo panelas, saiu às ruas e derrubou o governo do presidente Fernando de la Rúa.
Foi a obra de maior sucesso durante uma visita de estudantes de 10 a 12 anos. A professora explicava: "Infelizmente para os argentinos, Deus extinguiu os dinossauros há muito tempo".


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